sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Mi Buenos Aires Querido



 

























"O fio se perdeu; 
o labirinto também se perdeu. 
Agora, nem sequer sabemos 
se nos rodeia um labirinto, 
um segredo cósmico 
ou um caos azarado. 
Resta-nos como missão imaginar 
que há um labirinto e um fio." 
(Jorge Luis Borges)

Santa Maria de Buenos Aires é um lugar complicado desde suas origens cristãs, quando foi tomada aos índios charruas, querandis e guaranis que a habitavam. Parece ter havido um primeiro português, Aleixo Garcia, sobrevivente do naufrágio da expedição de Juan Dias de Solis nos primeiros alvores dos anos 1500, então a serviço da coroa espanhola. Este português se teria casado com uma nobre índia guarani e passou a influenciar a tribo, mas, segundo a lenda, foi seduzido por um sonho, o de conquistar "a terra sem males", e em busca dela partiu, à frente de uma legião nômade jovem e corajosa, subindo Rio Paraguai acima. E dele não se teve mais notícia. 

Décadas mais tarde, a Coroa espanhola mandou um representante imperial, com o propósito de tomar conta do estuário e defendê-lo de quaisquer intrusos. Nesta altura, o vice reinado já estava instalado em Lima, Peru, usufruindo do ouro e regalias conquistadas pelos comandantes Cortêz e Pizzarro junto aos adiantados índios Incas. Já os selvagens por aqui permaneciam brutos e inacessíveis. Em instantes reduziram drasticamente o contingente do governador Pedro de Mendoza, que ordenou o reembarque nas caravelas e, logo depois, a fuga imediata em direcão ao oceano, abandonando seu posto ao deus-dará. Uma parte da expedicão tentou regressar à Espanha e naufragou em alto mar, enquanto a outra parte empreendeu fuga subindo o Rio Paraná, com o propósito de alcançar a cidade de Asunción, que já tinha um contingente de colonos provenientes do Peru. Os espanhóis fugiram tão rápidos, que aqui abandonaram seu gado, cavalos e cabras, que passaram a proliferar na pampa ao largo no interior do continente, enquanto o núcleo urbano voltou à velha calmaria indígena. 

Até que em 1580 chega o novo governador, Juan de Garay, com a missão explícita de "plantar a árvore da justiça" na atual Praça de Maio. Faltou combinar com os índios que, em poucos anos de hostilidades, emboscaram o governador e o mataram. 

Falhou mais uma vez o esforço "civilizatório" e a aldeia mergulhou num semi abandono. Os colonos foram se espalhando pela pampa, sobrevivendo como dava e, na falta de novos colonos e contingentes militares para protegê-la, a cidade passou a ser ponto fácil do assalto de piratas de várias procedências, alguns na qualidade de representantes oficiais de seus respectivos reis, como os ingleses e franceses, e outros como representantes de si mesmos. Por 150 anos as terras fronteiriças ao Rio de la Plata viveriam na confusão do entra e sai de gentes, sob o olhar frouxo e indulgente da Coroa espanhola. 

A importância estratégica da pequena aldeia estava no fato de ser a porta e entrada por terras atlânticas para o complexo de Potosi, nos atuais Andes bolivianos, então o maior centro mineiro das Américas, com mais de cem mil habitantes, a maior aglomeracão humana no hemisfério sul. Só por isso, Buenos Aires sobreviveu ao seu destino inglório de porto pirata, por onde passavam o açúcar brasileiro, os tecidos da Holanda, ferro e porcelana ingleses, vinhos portugueses, etc, que abasteciam o Peru através da rota de Potosi. Por aqui também entrava a mão de obra escrava negra para as minas, já que os índios não se prestavam para isso e preferiam morrer. 

Vou pensando nessas origens, enquanto caminho por esta cidade-lenda, para atender um compromisso pouco comum: assistir ao ensaio da Orquestra Filarmônica de Buenos Aires, daqui à pouco, às onze da manhã no Teatro Colon. Ingresso muito difícil de conseguir, e que me foi presenteado por outro turista brasileiro, que encontrei casualmente, e que desistiu do programa. 

Olho no semblante das pessoas comuns nas ruas e avenidas, e vejo claramente a herança charrua, guarani e querandi. Os negros desapareceram completamente, eles que eram metade da populacão no ano 1750. Os argentinos não gostam de falar deste assunto, assim como detestam ter que admitir que seu maior ídolo, Carlos Gardel, era uruguaio, além do que seu principal parceiro (e eu acho que até namorado) foi um poeta nascido em São Paulo, Alfredo le Pena, cuja família imigrou para Buenos Aires quando ele era ainda criança, tal qual teria feito a mãe do pequeno Gardel, quando ele tinha dois anos de idade.  

Venho caminhando pela Avenida Independência e passo direto da estacão de metrô, cruzando a imensa Avenida Nove de Julho, com suas mais de 10 pistas de rolamento, entremeadas de passeios e calçadas. Vou verificar in loco o bar onde hoje à noite se estará apresentando uma cantora de chamamé correntino, Carolina Rojas, cujo show pretendo assistir. 

Desisto de tomar o Subte e prossigo a caminhada ao Colon, retornando à Nove de Julho. Ao passar pelo Obelisco, lá estão os eternos batedores de bumbo, com suas bandeiras estampando a boina e a cara do Che, suas faixas de protesto contra a nova ordem liberal, suas caras cansadas de militantes já entrados em idades, velhos comunistas que não perderam os sonhos (ou não sabem mais como viver sem eles).  

              


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