segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Como pedra a rolar


Bob Dylan lança sua canção Jokerman nos EUA em 1984. 
Denuncia nela um ídolo com pés de barro, personagem atribuído a Ronald Reagan.



Meus dois maiores ídolos da adolescência são judeus. O que isso quer dizer? Não é nada, não é nada, não é nada, mesmo!  Mas, aos quatorze anos de idade o projeto de gente que eu era, não encontrava muito prazer na própria casa ou no bairro onde morava. Veja que os tempos eram outros, não havia internet, não havia televisão, só o bruto barro vermelho da periferia de Maringá, pobre como a própria vida. Sequer sabia que perto de mim floresciam personalidades brilhantes como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, nada disso.  Meu mundo era circunscrito às rodas da bicicleta que me levavam de um lado a outro da cidade, uns 30 quilômetros por dia, a recolher documentos e entregar mensagens aos pequenos negócios clientes do escritório de contabilidade onde eu servia como Office-boy, palavra que naqueles tempos nós desconhecíamos, de modo que eu era mesmo “contínuo”. Até hoje não sei o que isso significa, mas, o que eu fazia naqueles tempos temerários era mais agradável do que o futuro grandioso que tive,  porquanto atuei como analista de sistemas e consultor de planejamento estratégico em grandes corporações. Nada jamais substituiu o prazer de parar num bar de estrada, sorver um guaraná gelado acompanhado de um bom pastel de palmito!




Jorge Mautner permanece atual e irreverente, um espírito adolescente aos setenta anos de idade.


O que isso tem a ver com judeus? Nada, exceto que meu único interesse era freqüentar a biblioteca pública, onde tomei conhecimento por acaso de um sujeito chamado Jorge Mautner, que havia escrito um livro chamado “Kaos, com “k””. Ali este cantor-compositor hoje famoso e setentão, descrevia  a revolta juvenil e filosofava sobre o sentido da vida. Enquanto eu me ocupava as noites lendo essas coisas, fiz amizade com a bibliotecária, uma senhora “velha” e aparentemente sozinha, nos seus talvez quarenta e poucos anos. Ela se interessou em saber por que aquilo me apaixonava e passamos muitas horas conversando sobre o existir, a vida que levávamos naquela cidade desprovida de outras atrações, antes que eu me ligasse no movimento mais pesado e perigoso do rock and roll e suas conseqüências paralelas, incluindo as garotinhas que iam atrás dos guitarristas, enquanto eu ia atrás delas, dentro do movimento infinito da vida.  Perdi a moça triste da biblioteca quando me mudei para Curitiba, mas, que casamento perfeito teria sido, não fosse a nossa inconciliável diferença de idades! Que fazer? Foi ela quem me falou do segundo judeu mais influente em minha formação cultural: Mister Robert Zimmernann.


"Como pedra a rolar" foi feita num momento de fúria, por ter sido abandonado pela namorada. 
Algo assim, tão trivial, transformou-se num hino juvenil que virou mega sucesso. 
Não tem nada a ver com a banda inglesa The Rolling Stones, como muita gente se confunde.

Bob Dylan também cresceu numa comunidade pequena e fechada, muito pior que Maringá, por que, além do frio glacial da fronteira canadense e das perspectivas diminutas do ambiente exclusivista judeu, não tinha nem um pouco da “poesia de todos os ninhos”,  o meu espantoso trecho da Mata Atlântica, conforme atestava o Hino de Maringá, que “adivinha a floresta de outrora, que embalou sua vida criança”.   “Há em ti o perfume das flores”, (haaa, desculpem pela displicência mental),  na verdade, falávamos da influência de alguns judeus sobre minha vida. Ao que eu saiba, nenhuma, pois, os dois influentes intelectuais, a primeira coisa que fizeram foi justamente negar a herança judaica. Dylan até se tornou cristão num curto período, por que, convenhamos, sair de uma armadilha para entrar em outra já é karma demais, não é mesmo?

Logo percebi que o estilo de Zimmermann, o Bob Dylan, não era diferente de Mautner, Vi também que existia um movimento planetário identificado com o significado da palavra “mudança”, e tornei-me imediatamente um mudancista. Passei a renegar todas as instituições da sociedade burguesa, desde casamento, ao qual prometi nunca me submeter, até famílias de qualquer tipo, forças armadas e justiça. Faltou pouco para eu cair na clandestinidade da luta armada naqueles anos de chumbo. Pura rebeldia juvenil compreensível aos 17 anos de idade!

Mas, ficou Bob Dylan e Jorge Mautner, como fica sempre uma pedra no sapato. Cada vez que eu me desviava para um patamar social acima, seja pela ascendência profissional natural, fosse pelo meu próprio talento de líder, orador de grandes multidões, escritor interessante fora da linha burocrata, lá vinha o Bob Dylan sussurrar no meu ouvido os versos do “mister tambourine man”.  




Um dos mais belos poemas musicados de todos os tempos. 

Dylan foi fundo na alma norte americana e compôs vários countries em sua longa carreira. São músicas de cow-boys, que ele pesquisou intensamente durante anos. Ele foi um craque na execução do estilo Chautauquia, que significa o cantar de peregrinos que andam pelas estradas da América do Norte, compondo poemas e contando causos através da música, em longas histórias sobre acontecimentos sem importância, porém representativos da cultura caipira dos Estados Unidos. Um de seus melhores momentos foi a criação do álbum "Sangue nas trilhas", de 1975.  Desse álbum, Dylan nunca permitiu o relançamento ou postagem daquelas músicas em qualquer mídia social. O disco em vinil, única edição lançada, está esgotado. Eu tinha uma cópia, mas alguém a levou. Espero que tenha feito bom proveito! Uma canção se destacou, como se fosse um longo filme, contando uma aventura do cotidiano do "far west". Devido a sua longa duração e complexidade dramática, está praticamente esquecida da obra do cantor, sendo muito pouco referenciada, mesmo entre os especialistas. Chama-se "Lily, Rosemary and The Jack of Hearts". No baralho, Jack of Hearts é o apelido da carta Valete de Copas.




O festival de verão já tinha terminado
Os rapazes já estavam planejando o outono

O cabaré estava silencioso
Exceto por uma perfuração na parede
A placa "fechado" era exibida na porta
E a roda de apostas guardada
Qualquer um com um pouco de senso
Já teria deixado a cidade
Ele, porém, estava de pé perto da porta
Parecia-se com a figura da carta Valete de Copas

Ele se moveu atravessando a sala espelhada
"Apronte tudo para todos", ele disse
Então todos começaram a fazer
O que faziam antes
Enquanto estavam em temporada
Ele se aproximou de um estranho
E lhe perguntou com um sorriso
"Você teria a bondade de me dizer, amigo,
A que horas começa o show?"
Então ele se posicionou em um canto
Rosto para baixo, como o Valete de Copas

Nos bastidores as meninas jogavam cartas
Perto da escada, Lily tinha duas rainhas
Ela torcia por uma terceira para compor a trinca
Lá fora as ruas se enchiam de gente
A janela estava toda aberta
Uma brisa gentil soprava
Você podia senti-la, lá de dentro
Lilly apostou novamente
E puxou o Valete de Copas

Big Jim não era tolo nem inocente
Era dono da única mina de diamantes da região

Ele fez sua entrada habitual
Todo emperiquitado e bonito
Com seus guarda-costas e bengala de prata
E cada fio de cabelo no lugar
Ele bebia o que queria, sem perguntar o preço
E esbanjava seu dinheiro à vontade
Mas ele e sua  bengala de prata

Não eram páreos para o Valete de Copas

Rosemary arrumou seus cabelos
E pegou uma carona até a cidade
Ela entrou pela porta lateral
Mais parecendo uma rainha sem coroa
Ela batia seus cílios postiços
E sussurrou no ouvido de Big Gim:
"Desculpe querido, estou atrasada?"
Mas ele não pareceu ouvir
Tinha o olhar como perdido no espaço
Mirando fixamente o Valete de Copas

"Eu sei que já vi este rosto antes"
Big Jim pensava consigo mesmo 
"Talvez tenha sido no México,
ou em um retrato na prateleira de alguém"
Mas então o povo começou a bater o pé
E as luzes da casa abaixaram
E na escuridão da sala
Havia apenas Big Jim e o Valete de Copas
Encarando a borboleta da sorte, que girava
E acabava de mostrar um Jack of Hearts

Lily era bela como uma princesa
Tinha pele alva e preciosa como uma criança
Ela sempre fez o que achava que precisava fazer
Havia um certo brilho a cada vez que sorria
Ela veio de longe, de uma família destruída

Teve vários casos esquisitos
Com toda espécie de homens
Que a levaram para todos os lugares
Mas ela nunca havia encontrado ninguém
Assim parecido com  o Valete de Copas

O juiz enforcador entrou desapercebido
E estava sendo servido de vinho e janta
A perfuração na parede continuava
Mas ninguém parecia dar muita atenção
Era fato público, sabido por todos
Que Rosemary era noiva de Big Jim
E nada nem ninguém jamais interferiria
No relacionamento dela com o rei da noite
Não, ninguém nem nada interfeririam
Exceto talvez o Valete de Copas

Rosemary estava bebendo muito
E olhando seu reflexo em uma faca
Ela estava precisando de atenção
Cansada de fazer o papel de esposa de Big Jim
Ela tinha feito muitas coisas ruins
Até certa vez tentou o suicídio
Estava completamente em crise e queria fazer 
Alguma coisa boa antes de morrer
Ela estava olhando para o futuro
Cavalgando em sonhos no Valete de Copas

Lily lavou o rosto
Tirou o seu vestido e o deixou de lado
"Será que minha sorte se esgotou?"
"Bem, suponho que você deveria saber
Que acabaria algum dia."
"Cuidado para não tocar na parede
Há uma nova demão de tinta
Fico feliz em ver que continuas vivo
Você mais parece um santo."
Descendo o longo e estreito corredor
Pegadas marcadas atrás do Valete de Copas

Nos bastidores o gerente se preocupava
Andando nervoso ao redor da cadeira
"Há algo estranho acontecendo", ele diz
"Eu simplesmente posso senti-lo no ar"
E foi falar com o juiz enforcador
Mas, o juiz enforcador estava bêbado
Enquanto o ator principal da cena
Se apressava com sua roupa de monge
Não havia em lugar nenhum algum ator
Melhor do que o Valete de Copas

Os braços de Lily se fechavam em torno
Do homem que ela tanto tinha gostado 

Ela se esqueceu completamente do marido
Já não mais o suportava 
"Sinto tanta falta de um homem como você !" ela disse
E o Valete de Copas viu que ela estava sendo sincera
Mas, além da porta
Ele sentiu o ciúme e o medo do outro
Apenas mais uma noite
Na vida do Valete de Copas

Ninguém sabe como foram as circunstâncias
Pois, como dizem, tudo aconteceu bem rápido
A porta para o vestiário abriu-se repentinamente
E um revólver frio foi engatilhado
Big Jim estava ali, de pé 
Não se pode dizer que houve surpresa
Rosemary estava ao seu lado
Aparentando firmeza no seu olhar
Sim, ela estava ao lado de Big Jim
Mas seu olhar procurava o do Valete de Copas

Duas portas depois
Os rapazes finalmente passaram pela parede
E limparam o cofre do banco
Dizem que levaram um bom bocado
Na escuridão ao lado do rio
Eles aguardavam no terreno
Por mais um membro da gang
Que tinha negócios a tratar na cidade
De modo que eles não podiam ir além
Sem o Valete de Copas

No dia seguinte era dia de enforcamento
O céu estava nublado e negro
Big Jim foi estendido e encoberto
Morto por uma facada nas costas
E Rosemary na forca
Ela sequer piscou
O juiz enforcador estava sóbrio
Ele não tocou em uma gota de álcool
A única pessoa faltando na cena
Era o Valete de Copas

O cabaré estava vazio agora
Uma placa dizia, "Fechado para reparos"
Lily já havia tirado
Toda a tinta de seu cabelo
Ela estava pensando em seu pai
Que ela muito raramente tinha visto
Pensando também em Rosemary
E refletindo sobre a lei dos homens
Mas, principalmente,
Ela estava pensando no Valete de Copas

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