Há um padrão de símbolos e imagens que estão gravadas no inconsciente da humanidade. Sempre que pensamos em Bagdá, nos aparece a figura de um califa cercado de belas mulheres, a sorver tranquilamente seu vapor de cannabis, viajando nas aventuras eróticas das mil e uma noites, como se não fosse preciso plantar e colher, guerrear e vencer para usufruir daquela vida de califa. Também pensamos ser natural dos alemães a franqueza rude com que lidam com a disciplina. Um policial latino americano nos aparece sempre como um sujeito meio gordo, de óculos escuro, a sugerir que pode ser comprado a qualquer instante por qualquer oferta.
Por isso, quando aqueles policiais alemães abriram a porta da cabine do trem noturno no qual eu cruzava o norte da Alemanha, todos trememos em nossas bases. Era como se rememorássemos uma noite invernal de 1941, a Gestapo ali, pedindo nossos documentos. Éramos eu, mochileiro latino americano, um casal de árabes com seu filho pequeno, uma moça hippie de provável origem sueca ou pelo menos Viking, pela expressão nobre de uma linhagem loira. Havia também um velho português. Esse eu reconheci não por que tivesse falado algo em nossa língua, mas, por que não tirava os olhos de um livro onde estava escrito na capa preta: Bíblia Sagrada.
Depois de três tentativas dos policiais em comunicar em alemão, inglês e francês, que queriam ver seu passaporte, o velho português olhava atônito para aqueles homens altos, fortes e já nervosos. Então, eu não me segurei e disse: "Eles querem ver seu passaporte, senhor!". Imediatamente ele abriu uma sacola e entregou o documento aos policiais.
Sim, eu era brasileiro e seria o único naquela sala a compreender que o velho português viajava sozinho, algo temerário na sua idade e condição. Iniciamos um diálogo no qual ele me contou que era viúvo e, diante da morte da esposa querida, resolvera assumir a função de pregador evangélico. Por isso, estava indo na direção da Dinamarca, como eu, para mais uma rodada de pregações. Na última semana, assim como eu, mas, por motivos diferenciados, havia estado na cidade de Amsterdam.
--- "Fui para lá afim de espalhar alguma benção capaz de fazer o Pai Celestial perdoar tanta iniquidade. Você sabia que há mulheres naquela cidade que fazem sexo com cachorros? Não digo os cachorros humanos, coisa comum, mas, refiro-me aos cachorros cachorros mesmo."
Tudo o que o velho não havia falado nas três horas iniciais da viagem ferroviária, soltava ali e agora, na minha frente e no meu ouvido. Aos poucos fui gostando daquela conversa mole, impregnada de preconceitos e equívocos, só por distração e rolagem do tempo na madrugada. Quando chegamos em nossa conexão na estação central de Colônia, ele não queria de jeito nenhum saltar do trem. Achava que estava indo direto à Dinamarca. Precisei ser duro com ele.
--- "Olha aqui, seu português desmiolado. São quatro horas da manhã e nosso trem para a Dinamarca passa daqui a duas horas. Esse trem em que estamos agora vai para Berlim e chega lá ao amanhecer. Se o senhor permanecer nele, nada lhe garante que vá encontrar outro companheiro de viagem que fale a sua língua. Sua última chance é agora. Siga-me!"
Fizemos um lanche, pago por mim, evidentemente. Não tinha dinheiro nem para um cafezinho. Eu gostaria de ter tomado um litro da monumental cerveja de Colônia, mas, em respeito às suas convicções religiosas, evitei a bebida, ato do qual muito me arrependi, pois não tive outra oportunidade para sorver o precioso líquido. Muito depois percebi que a Heineken dinamarquesa não é a mesma coisa.
Contou-me que muito cedo, ainda mocinho deixou sua aldeia e emigrou para o Brasil. Desembarcou no Rio de Janeiro e a vida foi lhe mostrando os interiores, até que se fixou em Vitória da Conquista, onde se converteu à fé batista, a igreja norte americana derivada do anglicanismo. Casou-se, teve seis filhos que o ajudaram no pequeno negócio de secos e molhados, até que, cinquenta anos depois, lhe faltou a esposa mulata e baiana que tanto gosto e prazer lhe dera pela vida afora. Sentiu que tinha chegado o momento de retornar ao lar da infância. Portugal já não era a mesma coisa. Seus irmãos estranharam muito que não quisesse ir a Fátima rezar pelos anos de afastamento. Sentiram mais ainda quando ele lhes comunicou que tornara-se pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Foi um pandemônio na família, quando resolveu que sua missão seria daqui pra frente converter a Europa.
--- "Que língua o senhor fala quando está em missão?"
---"Ora bolas, a única que sei, o português".
---"Haaa, então o senhor tem sempre um tradutor lhe acompanhando. Imagino que na Dinamarca vai estar um patrício seu, que fale dinamarquês."
---"Olha, meu filho, isso eu não sei. Só me preocupo com a mensagem que eu mesmo transmito como se fosse para mim, entende? Tudo baseado na Bíblia Sagrada. Como vão traduzir não é problema meu".
Então, eu me lembrei do filme REDS, 1981, que mostra Leon Trotski fazendo discursos revolucionários nos países muçulmanos da Ásia soviética, pregando a luta de classes, enquanto seus tradutores gritavam slogans religiosos, aos quais a multidão respondia em fervorosas preces islâmicas.
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