quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Tempo bom








--- O senhor acha que eu teria condições de ir para a Polícia do Exército?

O velho capitão médico do 20º Regimento de Infantaria do Bacacheri, ficou um tanto pensativo e me olhava de cima abaixo naquela tarde de sexta feira,  num  longínquo ano  de 1970.   Eu era um pouco mais alto e robusto que ele, mas, sem dúvida, muito abaixo das qualificações físicas dos soldados que havíamos destinado ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, situado no Rio de Janeiro. 

--- Meu jovem, quem tem que achar aqui é você, por isso lhe perguntei para onde você quer ir.  Cumprir essa sua vontade é o mínimo que posso fazer,  por sua ajuda aqui nessa bagunça.  Eu, no seu lugar, iria pra casa. 

--- Pois bem, se  é assim, eu gostaria que o senhor me indicasse para a Polícia do Exército do Rio de Janeiro.

Assim, sem mais nem menos, eu conseguia o objetivo de iniciar uma carreira militar no quartel mais famoso do Brasil durante os tenebrosos anos de chumbo da ditadura militar.  Mesmo sem possuir as qualificações físicas dos demais colegas, que acabaram me apelidando de “grilo”, devido a minha aparência pequena diante dos demais soldados, eu havia batalhado a semana toda para organizar e manter funcionando o serviço de arquivo da equipe que selecionava os   recrutas da 5ª Região Militar, em Curitiba.

Quando saí de Maringá para me alistar em Curitiba eu já tinha um propósito em mente: “Vou sentar praça no exército, chegar ao posto de sargento e correr o Brasil. Ao mesmo tempo vou desenvolver a carreira de escritor”, que era, na verdade, o que me interessava.  

Para isso eu não perdia qualquer oportunidade que me facilitasse este sonho, tão simples, ingênuo e inviável. Eu me inscrevia como voluntário para qualquer atividade aonde pressentisse alguma ajuda intelectual, desde elogiar palestrantes em museus e teatros no ambiente artístico de Maringá, onde eu atuava como locutor de rádio, até escrever crônicas que nunca foram publicadas no jornal conservador local.

Depois de dois meses de ordem unida na Rua Barão de Mesquita, Tijuca, tivemos nossa primeira licença para deixar o quartel e conhecer a “cidade maravilhosa”, com uma polpuda ajuda de custos nos bolsos da farda nova, vestimenta de luxo para a grande maioria daqueles colonos e pés-vermeios, agora convertidos em respeitados “Catarinas”, tropa de elite que se renovava ano a ano na Guanabara.

Quando chegávamos em patrulha na Lapa ou na zona do Mangue, os malandros abaixavam os chapéus para esconder o rosto e era bonito ver Madame Satan se levantar de sua mesa para nos cumprimentar na noite da Cinelândia.  Todos tínhamos por ele um grande respeito e temor, pois era famosa sua capacidade de enfrentar sozinho uma patrulha inteira de soldados.  Agora, depois dos 70 anos, ele já não representava perigo, em sua impecável camisa branca de seda, tratado com reverência mística pelos garçons em cada bar que entrava. Na juventude, foi o malandro mais famoso da Lapa. É dele uma frase antológica, numa entrevista ao Pasquim em 1971, quando  afirmou "Eu nunca matei ninguém, só fiz os furos, quem matou foi Deus". Passou metade de sua vida na cadeia. Numa briga de rua em 1955, assassinou o sambista Geraldo Pereira, autor de grandes clássicos como Acertei no milhar Sem compromissoPisei num despacho, etc.

A "viadagem" se agitava sempre com a nossa chegada, fosse  na Cinelândia ou nos meios intelectuais de Copacabana e Ipanema. Grandes atores e escritores famosos eram doidinhos por um "catarina" bem dotado; e alguns de nossos colegas acabaram se casando com homossexuais ricos, que lhes davam tudo do bom e do melhor. Eu, heim? rs rs rs.

Roda de samba era comum e segura! Subíamos Mangueira, Salgueiro, Borel ou Jacarezinho, e ninguém contestava nossa presença, a não ser um ou outro com ciúmes da mulata,  logo acalmado por seus pares, que não queriam problemas com a soldadesca... Traficante praticamente não existia e bandido era tão raro, que era mais fácil vê-los em filme de caubói americano nos cinemas da Praça Saenz Peña, Tijuca, um bairro de classe média, cujas empregadinhas adoravam namorar os "catarinas" da PE pelas pensões do bairro.   Hooo, tempo bom!





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