Um rapaz mulato e pobre, imigrante nordestino, atira um rojão num
repórter cinematográfico, durante uma manifestação democrática de rua no Rio de Janeiro. Deve ser punido
como criminoso comum, sem dúvida. A sociedade está cercada de proteção contra
malucos desta natureza, mas, o que fazer para reparar a perda dos familiares do
infeliz câmera man? Não há julgamento que recompense a tragédia no ambiente
privado de uma família. Imagine então dezenas de famílias atingidas por
assassinos enlouquecidos, como no caso das matanças de crianças em escolas,
coisa mais ou menos comum no Estados Unidos e raras por aqui. Nem por isso
estamos imunes. Algum tempo atrás, outro rapaz igualmente tresloucado invadiu
uma escola no mesmo Rio de Janeiro e matou várias crianças, e mais continuaria a
matar, não fosse a providencial intervenção de um policial, que conseguiu atingi-lo
com uma bala certeira.
Meia dúzia de
psiquiatras, vários especialistas em comportamento humano, nenhum conseguiu
explicar a contento o inexplicável. A profundeza da loucura humana.
"Eu queria ser médico para
poder matar" era o que dizia um participante de um grupo terapêutico do
qual eu fazia parte. Nós estávamos no meio do mato e fazíamos experiências que
alteravam o estado normal de consciência, jornada devidamente
conduzida por especialistas. Aquele paciente demonstrava essa tremenda
contradição, sonhava ser médico, não para salvar vidas, mas para ter a
liberdade de levar outros seres humanos à morte, com poucas chances de ser punido
pelos rigores da lei. Não custa lembrar que um formando de medicina invadiu um
cinema de São Paulo e abriu fogo contra a platéia.
Naquele caso de Realengo, Rio de
Janeiro, o sujeito deixou uma carta esdrúxula, manifestando intensa crença
religiosa, instruindo os rituais que esperava para o próprio funeral, pedindo até por "um seguidor de Deus",
puro e virginal, que orasse em sua tumba e pedisse a Deus perdão pelo que ele iria
fazer premeditadamente poucas horas após escrever o bilhete suicida, pois, se
não fosse atingido pelo policial, com certeza teria atirado contra a própria
cabeça. Vejam alguns depoimentos de testemunhas de crianças que sobreviveram à tragédia.
--- Ele dizia para as crianças "Vira de costas, que eu vou te matar" e atirava na cabeça.
--- Seu semblante parecia sorrir enquanto atirava.
--- Ele atirava nos pés das crianças que estavam em fuga, depois atirava no rosto.
--- Tinha o olhar transtornado, mas decidido.
Nunca havíamos visto no Brasil este
ódio que se mistura com religiosidade. Mesmo nos rincões onde se pratica o
assassinato em nome da divindade, as vítimas são povos de outras crenças,
"infiéis" destinados ao fogo do inferno.
Antigamente as religiões costumavam
traçar padrões austeros de comportamento, como humildade e resignação. É muito
recente a prática de rezar pela acumulação de riqueza. Especialmente algumas
igrejas evangélicas iniciaram cultos com características de catarse coletiva,
onde o objeto da oração não é a aproximação com a energia do sagrado, mas, sim,
preparar o sujeito para obter sucesso e bem estar nesta vida, o mais rápido
possível. A expansão fenomenal da Igreja Universal é testemunha de como essa
prática se consolidou no meio da população, especialmente a classe média C e D...
Por outro lado, com a explosão dos meios
de comunicação, os assassinatos em massa nos Estados Unidos e os homens bombas
muçulmanos explodem na nossa sala, em telas cinematográficas com dezenas de
polegadas. Eu me pergunto se essas coisas, o trivial e a banalização da
religiosidade e da morte, não estariam ligadas à tragédia de Realengo. Só pergunto.
Por que respostas, nem os psiquiatras encontraram.
Houve um tempo que o simpático
logradouro de Realengo foi mais alegre, tal qual o conheci na juventude,
voltando das madrugadas boêmias, caminhando pelas suas ruas desertas e ouvindo
apenas o cantar dos galos e os batuques da macumba. Foi ali que Gilberto Gil se
despediu do Brasil, quando se mandou para Londres, corrido por um rabo de
foguete disparado pelos generais da ditadura.
Estamos vendo um país mais real, embora muita gente preferisse acreditar que éramos um povo mais harmonioso, equlibrado, pacífico e amoroso, capaz de aceitar de forma resignada todas as desigualdades.
ResponderExcluir