Sou um especialista em política paranaense. Acompanho os acontecimentos desde 1961, quando tinha dez anos de idade e vi a eleição de Nei Braga. Será que está vivo?
Tenho na memória a lembrança do meu norte do Paraná, terra que nunca vou esquecer. Estará marcada para sempre dentro de mim.
Já disse aqui antes que,
quando Jaime Lerner passou o governo para Roberto Requião, lá no longínquo
janeiro de 2003, saiu do palácio diretamente para o aeroporto afim de embarcar
para Moscou, onde iria morar e produzir sua arte maravilhosa arquitetônica,
pois tinha certeza que os novos governos Estadual e Federal, com promessas
moralizantes de Requião e Lula, não lhe iriam perdoar e fariam tudo para
colocá-lo na cadeia. Pois é, fizeram nada.
Dentro de um grande acordo com os criminosos da "privataria",
fenômeno que entregou para o capital internacional nossas principais riquezas,
o governo Lula esqueceu a auditoria que prometera realizar. Da mesma forma
Requião, no Paraná, além do esquecimento, continuou a entregar mais estradas
para os vergonhosos pedágios incondicionais, pois você não tem alternativa,
paga e não bufa. Viajar de carro ficou
inviável no Paraná. Na última vez que fui visitar minha família em Maringá, ao
longo dos 400 km de estradas, a maioria em pista comum, parei em 13 postos de
pedágio, que me levaram mais de 50 reais só na ida. Fora o combustível. Daqui
pra frente está decretado, em nome da economia doméstica: Vou de ônibus. Mesmo
que não possa mais levar os cachos de banana e as tainhas que costumava
presentear ao pessoal de lá.
Zezé, quanta saudade! O Paraná será sempre grato por esses mineiros. "Pras ribas de Piraquara a devassa nunca para!".
Em 1974
eu tentava a vida em Curitiba. Foi quando me apareceu uma moça ligada ao MR8 e
ao centro acadêmico da minha faculdade. Achando graça no meu modo de ser, me pediu em namoro no momento em que me presenteou com o álbum "The Dark Side of
the Moon".
Foi minha introdução ao
amor e ao rock progressivo. Eu já tinha visto um show do grupo "O
Terço", já conhecia o disco "Milagre dos Peixes", admirava "Crimson and Clover, over and
over", que fazia a voz do cantor entrar por canos de órgãos eletrônicos,
produzindo sons distorcidos, como distorcidos eram os acordes de Jimmy Hendrix nas esquisitas guitarras. Mas eu gostava mesmo era dos countries de
Bob Dylan e Neil Young. Se é que dava para entender o que aqueles caipiras diziam
naquele sotaque estranho, que meu fraco inglês não podia decifrar.
O Brasil
vivia o caos do fechamento cultural e político. A ditadura não permitia nada,
nem filmes, nem músicas, nem livros. Tudo que entrava aqui tinha que passar
pela censura do regime fascista. Vivíamos a transição de Médici para
Geisel. A propaganda oficial havia
apresentado o General Garrastazu como sendo descendente dos Médici italianos,
os patrocinadores do gênio do renascentismo, Leonardo da Vinci, entre outros. Mas, este nosso Médici se comportava como um
facínora de Hitler. Assim é a
propaganda... de modo que a expectativa de um general alemão que vinha ali, como sucessor do Garrastazu ainda era a pior
possível, porém, Geisel se mostrou bem mais centrado e inteligente. Entendia de geo-política,
coisa que os generais anteriores ignoravam. Ele viu que a ditadura já estava desgastada e que o Brasil precisava se abrir ao mundo, se quisesse
efetivamente virar a potência que os militares haviam projetado. Então lançou o projeto "Anistia",
para pacificar e reorganizar o país, o que de fato só foi acontecer no ano de
1979, com seu sucessor João Batista Figueiredo.
Nos anos
oitenta explodiu o rock brasileiro, junto com a explosão de todas as demais
formas de arte e manifestação popular no país. Agora, as festas rolavam Brasil
afora, animadas pelo vai-e-vem-das-suas-cadeiras, conforme cantava o jovem
mestre Cazuza.
Peter O'toole estrelava o elenco de astros do
filme "A Noite dos Generais", obra prima do cinema britânico sobre a
segunda guerra mundial, mas foi o egípcio
Omar Shariff que roubou a cena ao interpretar o investigador que descobriu os
crimes do general nazista que esteve no comando da ocupação de Paris, durante um certo
período na segunda guerra mundial. Esse general tinha sérios problemas
psicológicos e costumava levar prostitutas de rua para hotéis baratos, onde as assassinava. Na
mesma linha psicótica, entrava em transe diante de certos quadros do Museu do
Louvre. Apesar das forças alemãs terem fechado todos os museus da cidade, ele
visitava o depósito onde estavam guardadas as obras de arte, durante as madrugadas,
quando podia apreciar à vontade os quadros que escolhia. Uma das cenas mais
impressionantes do filme é quando o general confronta seus malucos olhos azuis contra
os de Van Gogh, pendurado ali na parede.
No ano 2000 eu fiz um roteiro de trinta dias para seguir os
passos de Van Gogh de Amsterdan até o sul da França, culminando com seu túmulo
nos arredores de Paris. Nos museus da Holanda estão guardadas a maioria de suas obras, no entanto, sua história e
principais quadros estão na França. Lá visitei as cidades por onde ele passou,
cujo epicentro é Arles, onde dezenas de
artistas do mundo todo hoje procuram reproduzir suas obras, aquelas que Van Gogh pintou nos
bares e cabarés da cidade ou às margens do Rio Rhone, conforme se pode ver na
maravilhosa tela reproduzida abaixo, a qual pintores do mundo inteiro tentam reproduzir, sem sucesso, diga-se de passagem.
Van Gogh pintou a cidade de Arles com seus próprios olhos malucos e brilhantes
Foi bom para mim observar os jovens pintores nesta impossível tarefa, pois a energia do local fica muito agradável, principalmente se você em seguida vai ao bar que ele pintou na mesma época, e que persiste da mesma forma até hoje, uma relíquia preservada no tempo, graças a gratidão da cidade de Arles com seu mais famoso habitante.
O mesmo bar pintado por Van Gogh em 1888 e hoje. Visita obrigatória a todo turista que não quer apenas tirar fotos.
Dito assim,
parece que a vida de Van Gogh tenha sido uma beleza. Pois, não foi, não! Morreu
aos trinta e sete anos de idade sem nunca ter vendido um só quadro.
Desde que
saiu da roça, na Holanda, viveu sob a dependência econômica de seu irmão, que já era negociante de artes em Paris.
Esteve várias vezes internado como louco, que era mesmo. Hoje é considerado um dos
maiores gênios da humanidade e seus quadros valem milhões de dólares, inclusive
um, "O Escolar", que temos a sorte de contar no acervo do MASP em São Paulo, trazido por outro louco, o mago italiano Pietro Maria Bardi, que veio da Europa destruída
pela guerra para dirigir o museu que Assis Chateaubriand mandou erguer às suas próprias custas, graças
à sua extrema generosidade e visão futurista.
A mais bela homenagem a Van Gogh que eu assisti não foi na França nem na
Holanda. Foi na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, quando um artista apresentou
uma exposição temática, muito bem decorada, onde mostrava vários quadros inspirados numa suposta festa de casamento de Van Gogh, algo
que realmente nunca aconteceu. Consta
que Vincent Van Gogh nunca teve sequer namorada e suas poucas experiências
sexuais deram-se com prostitutas. Mas, ao contrário do outro maluco, o do
filme, Van Gogh nunca matou ninguém a não ser a si mesmo, quando estava em tratamento psiquiátrico com um médico francês, Dr. Gachet, que o acolheu em sua casa nos arredores de
Paris.
Van Gogh está enterrado ali mesmo, no meio de um maravilhoso trigal, que
pintou tantas vezes com seu incompreendido amor. Foi lá que chorei minhas lágrimas mais verdadeiras, como se estivesse na tumba de um irmão.
Van Gogh suicidou-se em meio aos trigais que povoaram sua curta vida. Está enterrado num deles, perto de Paris.
Um rapaz mulato e pobre, imigrante nordestino, atira um rojão num
repórter cinematográfico, durante uma manifestação democrática de rua no Rio de Janeiro. Deve ser punido
como criminoso comum, sem dúvida. A sociedade está cercada de proteção contra
malucos desta natureza, mas, o que fazer para reparar a perda dos familiares do
infeliz câmera man? Não há julgamento que recompense a tragédia no ambiente
privado de uma família. Imagine então dezenas de famílias atingidas por
assassinos enlouquecidos, como no caso das matanças de crianças em escolas,
coisa mais ou menos comum no Estados Unidos e raras por aqui. Nem por isso
estamos imunes. Algum tempo atrás, outro rapaz igualmente tresloucado invadiu
uma escola no mesmo Rio de Janeiro e matou várias crianças, e mais continuaria a
matar, não fosse a providencial intervenção de um policial, que conseguiu atingi-lo
com uma bala certeira.
Meia dúzia de
psiquiatras, vários especialistas em comportamento humano, nenhum conseguiu
explicar a contento o inexplicável. A profundeza da loucura humana.
"Eu queria ser médico para
poder matar" era o que dizia um participante de um grupo terapêutico do
qual eu fazia parte. Nós estávamos no meio do mato e fazíamos experiências que
alteravam o estado normal de consciência, jornada devidamente
conduzida por especialistas. Aquele paciente demonstrava essa tremenda
contradição, sonhava ser médico, não para salvar vidas, mas para ter a
liberdade de levar outros seres humanos à morte, com poucas chances de ser punido
pelos rigores da lei. Não custa lembrar que um formando de medicina invadiu um
cinema de São Paulo e abriu fogo contra a platéia.
Naquele caso de Realengo, Rio de
Janeiro, o sujeito deixou uma carta esdrúxula, manifestando intensa crença
religiosa, instruindo os rituais que esperava para o próprio funeral, pedindo até por "um seguidor de Deus",
puro e virginal, que orasse em sua tumba e pedisse a Deus perdão pelo que ele iria
fazer premeditadamente poucas horas após escrever o bilhete suicida, pois, se
não fosse atingido pelo policial, com certeza teria atirado contra a própria
cabeça. Vejam alguns depoimentos de testemunhas de crianças que sobreviveram à tragédia.
--- Ele dizia para as crianças "Vira de costas, que eu vou te matar" e atirava na cabeça.
--- Seu semblante parecia sorrir enquanto atirava.
--- Ele atirava nos pés das crianças que estavam em fuga, depois atirava no rosto.
--- Tinha o olhar transtornado, mas decidido.
Nunca havíamos visto no Brasil este
ódio que se mistura com religiosidade. Mesmo nos rincões onde se pratica o
assassinato em nome da divindade, as vítimas são povos de outras crenças,
"infiéis" destinados ao fogo do inferno.
Antigamente as religiões costumavam
traçar padrões austeros de comportamento, como humildade e resignação. É muito
recente a prática de rezar pela acumulação de riqueza. Especialmente algumas
igrejas evangélicas iniciaram cultos com características de catarse coletiva,
onde o objeto da oração não é a aproximação com a energia do sagrado, mas, sim,
preparar o sujeito para obter sucesso e bem estar nesta vida, o mais rápido
possível. A expansão fenomenal da Igreja Universal é testemunha de como essa
prática se consolidou no meio da população, especialmente a classe média C e D...
Por outro lado, com a explosão dos meios
de comunicação, os assassinatos em massa nos Estados Unidos e os homens bombas
muçulmanos explodem na nossa sala, em telas cinematográficas com dezenas de
polegadas. Eu me pergunto se essas coisas, o trivial e a banalização da
religiosidade e da morte, não estariam ligadas à tragédia de Realengo. Só pergunto.
Por que respostas, nem os psiquiatras encontraram.
Houve um tempo que o simpático
logradouro de Realengo foi mais alegre, tal qual o conheci na juventude,
voltando das madrugadas boêmias, caminhando pelas suas ruas desertas e ouvindo
apenas o cantar dos galos e os batuques da macumba. Foi ali que Gilberto Gil se
despediu do Brasil, quando se mandou para Londres, corrido por um rabo de
foguete disparado pelos generais da ditadura.