sábado, 29 de novembro de 2014

Estrada, sagrada estrada

Quando completei 50 anos fiz minha primeira viagem à Europa. Sim, eu sei que fui muito tarde, e também tenho a explicação para isso: achava que não era direito fazer uma viagem dessas, tão apropriada para as classes mais altas. Fiz um  pacto comigo mesmo: só vou para a Europa quando tiver conhecido todo o Brasil. Sei que é bobagem, coisa de quem nasceu, viveu e vai morrer pobre, pelo menos de espírito. O que custava pegar uma mochila e ganhar o mundo do outro lado do oceano?  Mas, eu não me dava este direito e prazer. Esperei 50 anos!

Afinal, completei minha corrida pelo Brasil para me sentir autorizado. Naveguei mares e rios, subi montanhas, cruzei campos e banhados, numa longa jornada feita aos poucos.  Todo ano escolhia um lugar e para lá levava minha vasta ignorância, em busca de conhecimento. Não me bastava apenas olhar e apreciar. Tinha que frequentar os botecos, conversar com as pessoas da terra, entender os sotaques, ouvir a música, ver as baixarias dos políticos locais.


Perceber que são todas iguais e por aí se vai. 
O Brasil realmente não é para amadores! 


Mesmo com o espírito assim pacificado, tive que fazer um novo pacto para finalmente me autorizar a botar os pés em Paris. Teria que ter um motivo nobre, então, combinei com minha consciência de percorrer os caminhos do pintor Vincent Van Gogh, desde sua cidadezinha nas redondezas de Amsterdan até Arles, sul da França, onde teve seu apogeu artístico, que afinal ninguém compreendeu, pois ao longo de sua curta vida de 34 anos não vendeu um único quadro sequer, até cometer suicídio num trigal como os tantos que pintou na vida, nos arredores de Paris, onde também fui e vi seu túmulo ao lado do irmão Theo, que morreu de tristeza ao saber do triste fim de seu protegido. 

Noite Estrelada sobre o Rhone, pintada em Arles (1888) está no Museu D'Orsay, Paris

Aproveitei para dar um pulinho em Londres e assistir a programação da passagem do milênio, que ainda estava rolando e iria se estender até o final do ano. As atrações eram muito caretas, inapropriadas para um mochileiro rockeiro brasileiro. A única coisa que me emocionou não foi a apresentação no palco principal, que exibia um excêntrico homossexual chamado David Bowie, o qual, por mais famoso que fosse, não me era minimamente interessante. Fiquei realmente tocado num auditório secundário, onde 50 gatos pingados assistiam o grupo sul africano Ladysmith Black Manbazo.


No aeroporto de volta ao Brasil, descobri que outros brasileiros viajam sem culpa, mas, talvez não aproveitem tanto.  A meu lado na fila de check-in estava um carioca, de meia idade como eu, e entabulamos uma conversa onde descobri também a imensa e abissal diferença que pode existir entre viajantes, mesmo falando a mesma língua. Começou quando ele perguntou quanto eu havia pago para vir até o aeroporto. "Quatro dólares", respondi. "Como pode, se o meu táxi saiu por 80?", Eu me espantei: "Você veio 40 quilômetros de táxi?".  Então eu vi que o homem sozinho carregava quatro malas, o que realmente tornava proibitivo ele fazer a viagem de trem, como eu fiz.  Outra pergunta dele atiçou minha curiosidade: "Você foi ao Crazy Horse?".  Respondi com um palavrão apropriado ao saber do suposto evento "PQP, como fui perder isso? É minha banda preferida". Foi a vez dele pedir explicações, pois não entendeu a razão do meu espanto. Só depois de muito papo é que descobri que ele se referia ao famoso cabaré parisiense, enquanto eu falava da banda de rock do Neil Young.