domingo, 31 de janeiro de 2016

MEMÓRIA HIPPIE - América Latina atávica e profunda




SALTA - das cidades tranquilas se pode ver a cordilheira

LA NOCHERA - zamba argentino

Houve um tempo em que todos os países do Cone Sul, nossos vizinhos, estavam submetidos a tenebrosas ditaduras militares. A primeira foi a do Brasil (1964), seguida por Uruguai, Chile e a última, Argentina (1976). O Paraguai e Bolívia sempre foram ditaduras. O sufoco era grande, não havia liberdade para nada e o seu próprio vizinho poderia ser seu delator de coisa nenhuma, por que não se necessitava motivo para prender um cidadão, submetê-lo a todo tipo de humilhação e violência, e até tirar-lhe a vida, se o indivíduo que estivesse na posse transitória do seu corpo indefeso assim o desejasse. No caso do sujeito ser acusado de crime mais grave, como pertencer a algum grupo guerrilheiro, por exemplo, ou simplesmente ajudá-los financeiramente ou estruturalmente, as torturas poderiam ser insuportáveis e muita gente morreu sob elas, em todos os países do sub continente, inclusive no Brasil.

Por essa época, uma parte da juventude mais descolada, saia a percorrer as trilhas do interior do continente, onde não havia nada, a não ser memórias de outros tempos. Foi assim que um grupo de hippies argentinos, fugindo da violência em Buenos Aires, fundaram a aldeia de El Bolson, uns cem quilômetros abaixo de Bariloche, incrustada num vale no meio dos Andes, na altura do equivalente chileno de Chiloé, outro refúgio famoso. Ao norte, entre Argentina, Chile e Bolívia, a província de Salta era um dos roteiros preferidos dos brasileiros, por que reunia também vários jovens europeus e norte americanos, todos em busca do deserto de Atacama, cujo acesso pelo oeste se dá cruzando a fronteira em Salta.
Noventa e nove por cento da populacão de Salta é descendente de índios. Vinte e cinco por cento ainda vivem em tribos, falando exclusivamente a língua nativa. Aqui, na solidão entre o deserto e as geleiras eternas, criou-se um estilo de canção triste, la Zamba. Os compositores brancos, descendentes de espanhóis, Jaime Dàvalos e Ernesto Cabezas, ambos da cidade de Salta, foram os autores de uma das canções mais emblemáticas para descrever o estado de solidão e as memórias de tempos idos, universalmente quase sempre felizes. Justamente por que já passados. O que nos causa apreensão é o futuro. O passado, quase sempre, é apaziguante.
Aqui vamos ouvir uma versão feita pelo autor da letra e sua própria filha. Trata-se de uma versão preciosa e histórica, embora mais triste que o usual.








terça-feira, 26 de janeiro de 2016

LUGARES IMPROVÁVEIS - Curitiba e a 34ª Oficina de Música




Não fosse pelo sol escaldante à pino, Curitiba teria sido neste janeiro um verdadeiro paraíso. Ruas tranquilas, quase sem engarrafamentos, parques e praças de padrão europeu, limpos e bem cuidados, gente educada nos teatros e restaurantes, enfim, a turba estava toda de férias nas praias, enquanto os músicos, arranjadores, compositores e estudantes, montavam um cenário cultural e artístico dos mais importantes na América Latina. Sopros, cordas e metais dedicados à 34ª OFICINA DE MÚSICA, que se realiza entre 07 e 27 de janeiro de 2016. 

Curitiba desde há muito tempo pratica a arte musical erudita, como poucas cidades brasileiras. À esta modalidade, vieram juntar-se brasileiros e estrangeiros que admiram ou praticam a música popular brasileira, como o samba, o chorinho, a valsa, a bossa nova e a música caipira, assim como experimentações de novos sons e tecnologias. Até o velho e bom rock-and-roll teve seu espaço.  Dos 113 professores que ministraram cursos e oficinas ao longo do festival, numa passada de olhos eu, que sou leigo no assunto, identifiquei algumas das figuras emblemáticas do cenário musical popular brasileiro, Sergio Valdeos, violonista peruano; Roberto Correa, violeiro; Paula Santoro, cantora, atriz e produtora; Paulo Belinati, violonista; entre outros.  

Cheguei à cidade na sexta feira 22,  à noite, e já vi um show fantástico com dois violões, o de Paulo Belinati e o de Marco Pereira.  São simplesmente dois monstros sagrados entre os principais instrumentistas brasileiros. Milhares de jovens estudantes aprendiam e aplaudiam na platéia.



Sábado, era dia de rock, estranhamente com o sol de meio dia queimando o palco na Boca Maldita, como convém a este estilo musical. A Banda Gentileza continuou apresentando estranhamentos, com um repertório inteligente e audível. Rapazes jovens e talentosos, bem educados e bons músicos, quase não combinando com a tribo que ali estava para esperar a apresentação dos velhinhos da Blindagem,  a épica banda do Paulo "chutes de poeta não levam perigo à meta" Leminski, cujo crooner foi Ivo Rodrigues, o "lobo da estepe". Ambos morreram de cirrose, para mostrar que não pegavam leve de jeito nenhum.   





Na noite do sábado, veríamos algo muito raro. Um quarteto camerístico só de violões, o Quarteto Maogani. Eles tocaram canções autorais variadas do quarteto e outras do disco Canela, que gravaram no Peru com o cantor Renato Braz, um intérprete único, de primeira linha. 



Agora, me diz, por que não se faz algo assim em Floripa? Das três capitais do sul, a nossa é a mais desprovida de atividades culturais. Será por que Curitiba e Porto Alegre possuem duas grandes Universidades e vários conglomerados educacionais ?  A nossa capital também tem duas grandes, UFSC e UDESC, além de várias fundações e entidades privadas como Unisul, Univale, Colégio Catarinense, etc., todas de grande importância e inserção social. Será por que Curitiba teria gestores melhores que os nossos? O atual prefeito de Curitiba é do PDT, que, assim como o PSD de Raimundão e Cezinha, estão na base aliada do PT federal. 

Será, então, que os políticos de Curitiba são mais cultos? E por isso dariam maior apoio para projetos culturais não comerciais? Aqui no estado também temos uma secretaria e um conselho estadual de cultura, que selecionam projetos a serem apoiados pelo setor público. Se usam estes recursos para patrocinar corridas de patinete, é por que se sentem à vontade, sem pressão da sociedade. Os políticos de Curitiba não são especialmente interessados em arte, por que isso não dá voto, nem lá, tampouco cá. O que acontece é que Curitiba foi capaz de criar pressão sobre os políticos que comandam o Estado e suas verbas, através de uma opinião pública atuante, politizada e organizada.    
  
Antes de pagar 300 reais ou mais para assistir um show de grandes artistas nacionais, pense que você poderia ver algo semelhante ou até superior, pagando a micharia de 10 reais, como eu paguei em Curitiba. 

domingo, 17 de janeiro de 2016

MEMÓRIA HIPPIE - Jokerman


Em 1984 os Estados Unidos passavam por uma fase ruim. Ronald Reagan era o presidente. Apesar de ele próprio ser pai de um filho gay, os homossexuais nunca foram tão perseguidos na América do Norte. As liberdades democráticas eram completamente ignoradas no país da liberdade. Do ouro lado do Atlântico, Margaret Thatcher fazia com Reagan a dupla de área que defendia o time do atraso.

Era a ressaca dos anos gloriosos da luta contra a guerra do Vietnam, que mobilizou a juventude nos anos 60 e 70.  Não para Bob Dylan, que foi ao principal programa da TV norte americana lançar ao vivo seu espetacular sucesso chamado Jokerman, um verdadeiro desafio ao presidente Reagan.

Caso não saibam, Jokerman é o nome do personagem Coringa, bandido ardiloso que tentava acabar com os heróis Batman e Robin.



Sobre as águas, jogando seu pão,
Enquanto os olhos do ídolo, com a cabeça de ferro, estão brilhando.
Barcos distantes rumo à bruma seguem seus cursos,
Você nasceu com uma cobra em seus pulsos, enquanto um furacão estava soprando
Liberdade logo ao virar a esquina para você
Mas, com a confiança tão longe, de que servirá?

Curinga dance para a melodia do rouxinol,
Pássaro, voe alto ao luar
Oh, oh, oh, Coringa.

O sol põe-se tão velozmente no céu,
Você se levanta e diz adeus para ninguém.
Tolos correm para lugares onde anjos temem pôr seus pés,
O futuro dos dois, tão cheios de temor, você não tem nenhum.
Mudando mais uma camada de pele,
Mantendo-se a um passo a frente do perseguidor dentro de você.

Curinga dance para a melodia do rouxinol,
Pássaro, voe alto ao luar
Oh, oh, oh, Coringa.

Você é um homem das montanhas, você pode andar nas nuvens,
Manipulador de multidões, você distorce sonhos.
Você irá para Sodoma e Gomorra,
Mas o que te importa? Lá ninguém vai querer casar com a
sua irmã. Amigo do mártir, um amigo da mulher que causa vergonha,
Você olha dentro da fornalha escaldante, vê um homem rico sem nome.

Curinga dance para a melodia do rouxinol,
Pássaro, voe alto ao luar
Oh, oh, oh, Coringa.

Bem, o Livro do Livítico e Deuteronômio,
A lei da selva e do mar são seus únicos professores.
Na fumaça do crepúsculo sobre um corcel lácteo,
Michelangelo realmente poderia ter esculpido sua feição.
Repousando nos prados, longe do espaço turbulento,
Meio adormecido perto das estrelas, com um pequeno cachorro lambendo seu rosto.

Curinga dance para a melodia do rouxinol,
Pássaro, voe alto ao luar
Oh, oh, oh, Coringa.

Bem, o fuzileiro aproxima-se silenciosamente dos doentes e aleijados,
O pregador busca o mesmo, quem chegará lá primeiro é incerto.
Cassetetes e canhões de água, gás lacrimejante, cadeados,
Coquetéis molotov e pedras atrás de cada cortina,
Juízes pérfidos morrendo nas teias que eles mesmos tecem,
É só uma questão de tempo até que a noite se instale.

Curinga dance para a melodia do rouxinol,
Pássaro, voe alto ao luar
Oh, oh, oh, Coringa.

É um mundo sombrio, céus são escorregadiamente cinzentos,
Uma mulher acabou de dar à luz a um príncipe hoje e o vestiu de escarlate.
Ele irá pôr o padre no bolso, pôr a lâmina para aquecer,
Tirem as crianças sem mães da rua
E coloquem-nas aos pés de uma meretriz.
Oh, Curinga, você sabe o que ele quer,
Oh, Curinga, você não demonstra nenhuma reação.

Curinga dance para a melodia do rouxinol,
Pássaro, voe alto ao luar
Oh, oh, oh, Coringa.



sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Floripa velha de guerra



O Palácio Cruz e Souza tornou-se residência oficial do assassino Moreira Cezar


No ano de 1894, a capital de Santa Catarina passou por um banho de sangue, por que ousou apoiar os Maragatos gaúchos, que haviam se revoltado contra o governo tirano de Floriano Peixoto. No dizer do jornalista Duarte Schutel, "encheu-se de presos tudo que se podia servir de prisão". A cadeia propriamente dita, mais a câmara de vereadores, o quartel central da polícia, o teatro Álvaro de Carvalho e a Fortaleza de Anhatomirim. A tortura era utilizada como meio trivial de interrogatório. Os condenados sem sentença nem julgamento foram escolhidos à dedo, para servirem de exemplo de como a República pune com rigor os que se lhe ousam fazer confronto. Muitos inocentes foram fuzilados, degolados ou enforcados, calculando-se entre 185 e 220 os executados na Ilha de Anhatomirim. Pais eram obrigados a assistir o fuzilamento dos filhos, outros tinham que enterrar em covas rasas seus parentes e conhecidos, antes de eles próprios serem mortos. 

Para coroar o escárnio, o governador Hercílio Luz, que perdera vários parentes e amigos entre os executados, decretou a mudança do nome da capital do estado, de Nossa Senhora do Desterro para FLORIANÓPOLIS, uma homenagem ao "marechal de ferro" Floriano Peixoto.  Como se vê, o atual Raimundo Colombo não está inovando, ao puxar o saco dos chefões federais do PT. 

Quis o destino que o coronel Moreira César, autor da carnificina, tivesse pouco tempo a celebrar seu feito nas rodas do Rio de Janeiro. Enviado dois anos depois a combater os revoltosos de Canudos, foi morto por uma bala certeira cabocla, durante a segunda tentativa do exército em tomar o baluarte de Antonio Conselheiro, no sertão da Bahia. 

Florianópolis continua tendo o nome oficial de seu algoz, mas, nenhum logradouro na capital ostenta este nome sangrento, nenhuma praça, nenhuma rua ou avenida, nenhum prédio sequer. Por outro lado, a cidade está cheia de homenagens às vítimas: Gama D'eça, Pinto da Luz, Caldeira de Andrada, Batovi, etc.  É estranho que o poder político não tenha providenciado a mudança de nome da capital.  Talvez seja a síndrome de Hercílio Luz, ou o medo de não agradar aos poderosos. Apesar disso, o povo se encarregou de mudar na prática e, nas conversas internas, poucos cidadãos se referem à cidade pelo seu nome oficial. Instituiu-se o simpático "Floripa", que acabou sendo "oficializado informalmente" pelo resto do Brasil. 



Eu, o autor dessas mal tecladas linhas, vim parar em Floripa no ano de 1979. Larguei de mão um par de boas propostas para trabalhar em São Paulo. Não me arrependo. Aqui passei os melhores momentos da minha vida. Incríveis manhãs de domingo na praia de Ingleses, da qual voltava em 20 minutos até minha casa no Saco dos Limões, onde preparava o almoço sorvendo uma boa caipira de cachaça artesanal, produzida no Engenho do Joca, Sertão do Peri. As praias do sul da ilha, incluindo as inacessíveis Lagoinha do Leste e Naufragados, exigiam uma visita de dia inteiro. Deslumbrantes almoços tipo festivais artísticos no Bar do Arante, Pântano do Sul, coroavam nossa aventura por este território não imaginado. 




domingo, 10 de janeiro de 2016

MEMÓRIA HIPPIE - Jimmy Webb, o gênio da música, poesia e orquestração


Mac Arthur Park em 1950.
Uma área verde no centro de Los Ângeles,
serviu de inspiração para a canção de Jimmy Webb  em 1967.

Mesmo que a maioria das canções norte americanas sejam as mais consumidas, isso não significa que são as melhores, senão que são as mais bem vendidas, do ponto de vista do marketing. Se eu coloco uma música como tema de um filme famoso, se a programo como trilha sonora importante da novela das nove horas, se encho as lojas de discos com este produto ou artista, parece certo que esse produto vai vender mais. Não por que seja melhor, mas, por que foi melhor trabalhado em termos mercadológicos. Em se tratando da força do mercado norte americano, qualquer margem extra conseguida nos demais países já passa a ser apenas um agregado, um lucro a mais, enquanto uma canção brasileira, por exemplo, vai encontrar muito mais dificuldades de competir dentro do nosso próprio país, imaginemos então a dificuldade de acessar mercados externos. Além da barreira comercial, outros fatores culturais vão dificultar o acesso a esses mercados, a começar pela língua. Mas, ainda assim, não são poucos os produtos que ultrapassam as barreiras e chegam ao mercado externo, como aconteceu com o movimento da bossa nova, um estilo brasileiro que continua a fazer sucesso no mundo inteiro e particularmente nos Estados Unidos, o país do Jazz, ritmo no qual se inspirou a bossa nova.
Ainda assim, é possível avaliar-se o produto musical com critérios bastante técnicos, o suficiente para distinguir o bom do ruim. Dou um exemplo: no ano de 1968 houve um festival internacional da canção, promovido pela Rede Globo. Na fase nacional, duas canções chegaram à grande final. Uma, altamente sofisticada, escrita por dois mestres, um da música propriamente dita, Tom Jobim, outro o seu parceiro Chico Buarque, um notório escritor de letras primorosas. A canção dos dois, chamada Sabiá, ganhou o prêmio do juri. Tratava-se de um poema sobre o exílio, musicalizado e arranjado de forma brilhante. Ao ser apresentada como vencedora, esta canção foi vaiada no ginásio Maracanazinho durante todo o tempo de sua apresentação, por uma orquestra sinfônica, e cantada pelas irmãs Cinara e Cibele, numa apresentação de nível excelente. A outra canção que com ela foi à final era uma guarânia no melhor estilo chorão paraguaio, puxada por um violãozinho muito sem vergonha, tocado pelo seu compositor e cantor. O público a amou e ela foi o maior sucesso comercial do ano de 1968. Até hoje é aclamada pelo grande público. Seu nome: "Caminhando (pra não dizer que não falei das flores)" e seu cantor-compositor era Geraldo Vandré. O que quero dizer com isso? Que "quem sabe faz a hora e não espera acontecer?". Não, rsrsrs. Na verdade, a questão do sucesso comercial depende de muitas variáveis e tem pouco vínculo com a qualidade.
No caso da música norte americana, além das facilidades de apoio estrutural providas pela tremenda vantagem comercial do país, eles possuem verdadeira qualidade, derivada de sua vasta diversidade cultural, pois o país, tal qual o Brasil, é um dos mais miscigenados do mundo, um conclave de todas as raças e das principais tendências culturas do planeta. Já é meio caminho andado, né?
Nesta edição da MEMÓRIA HIPPIE, vamos apresentar um artista norte americano de primeira grandeza, que soube como ninguém usufruir da infra estrutura proporcionada por sua indústria, mas agregou a ela o componente fundamental da qualidade. Foi um verdadeiro ícone do século passado, o único artista a ganhar tres prêmios Grammy's em tres áreas diferentes, orquestração, poesia e música. Trata-se de um rapaz simples, nascido no centro geográfico do interior do país, Oklahoma, aclamado como um dos mais brilhantes artistas da música popular norte americana. Apresento-lhes Jimmy Webb, o gênio da música, poesia e orquestração.
A canção, "McCarthur Park", é uma verdadeira obra prima composta em 1967 para o grupo The Association, que se assustou com o tamanho da canção e abandonou o projeto, originalmente pensado como uma opereta de 20 minutos de duração, completamente inviável do ponto de vista comercial. Foi a oportunidade de ouro que o ator Richard Harris aproveitou para se eternizar, assumindo a tarefa de enquadrá-la nos sete minutos atuais, amparados pela majestade da Orquestra Sinfônica de Londres.