Existe um Brasil que pouca gente
conhece. Aliás, existem vários. Nos cafundós da Amazônia, por exemplo, há
lugares completamente ignorados pela consciência nacional. No interior do
Maranhão, do Pará, do Piauí, do Tocantins, vixe maria!... há muito por descobrir.
Até mesmo no sul maravilha. Quem conhece a Colônia Cecília, que foi uma
experiência anarquista fracassada no século 19, em pleno estado do Paraná?
Alguém já foi ver o festival de Chamamé de São Luiz Gonzaga, na região
Missioneira gaúcha? Os maiores cantadores de Corrientes, Argentina, a capital do chamamé, já foram se apresentar
ali. O povo simples sequer sabe o que aconteceu ali entre 1690 e 1750. Os
gaúchos desavisados acham que Sepé Tiarajú era o Negrinho do Pastoreiro.
Pois, então. Nossa ignorância é grande. Apesar disso, nosso povo é criativo, solidário, alegre e sensível.
O que eu vou falar agora é algo ainda mais desconhecido. Passa-se numa pequena comunidade rural, no interior do município baiano de Vitória da Conquista. É um incrível núcleo protestante batista, encravado na católica e apostólica Bahia, onde está o cardeal primaz do Brasil, cargo no momento ocupado orgulhosamente pelo nosso irmão e bispo nascido aqui em Brusque, que foi arcebispo de Florianópolis, e nos levou a cantar em vários templos católicos da Europa, no ano de 2008.
Pois bem, naqueles cantos da Serra da Carantonha, de onde desaba o Rio Gavião, antes de traçar suas corredeiras pela planície que contorna a cidade de Vitória da Conquista, justamente ali, está um dos expoentes culturais do Brasil. A casa de espetáculos, centro cultural antropológico e caboclo, chamada Casa dos Carneiros. Não sei o por que do nome, já que seu proprietário não é nenhum "carneiro". Ao contrário, é um lobo lutador pela cultura sertaneja brasileira.
Este herói pátrio estudou arquitetura em Salvador. Mas, sua verdadeira missão era cantar sua terra, e assim o fez. Ao invés de seguir carreira projetando prédios e casas para a pequena burguesia, Elomar Figueira Melo voltou à sua terra e fundou aquela casa cultural. Sabendo que música não dá sustento a ninguém no Brasil, principalmente se for de origem profunda das raízes da alma sertaneja, Elomar cria bodes. Isso mesmo, bodes. Pensando melhor, acho que descobri a razão do nome "casa dos carneiros". Não é um tipo de bode? Elomar vende os bodes/carneiros para manter a propriedade. Eu estive lá e vi os bodes, criados ao solto, inclusive invadindo perigosamente a estrada de terra.
Uma ocasião, centenas de anos atrás, Elomar foi fazer um show em Curitiba. Estávamos pelos momentos das manifestações de primeiro de maio, atos políticos que os milicos detestavam, e para tergiversar, promoviam uma festa grande no campo do Ferroviário, atual Paraná Clube, para onde ia toda a pelegada. Mesmo assim, nós, cinquenta gatos pingados, fazíamos nossa manifestação obrigatória. Naquele ano, resolvemos fazê-la em plena cidade industrial de Curitiba, um atrevimento muito perigoso. Por isso mesmo, contávamos com algumas proteções, tipo assim alguns artistas famosos, contra os quais a polícia iria pensar duas vezes antes de baixar o pau. Por isso, eu e mais alguns ingênuos fomos ao hotel do Elomar convidá-lo para o evento.
--- Meus amigos, vocês me desculpem, mas eu não sou desse mundo, não! Minha vida é completamente distante dessas coisas terrenas. Eu vivo num mundo à parte, compreende? Não tem sentido a minha participação nesse evento que vocês querem promover, esse fogo de dragão que vocês querem mandar contra um dragão maior. Isso não pode dar boa coisa. Desculpem, mas, eu não posso aceitar o vosso honroso convite.
Jovens inexperientes da vida, que éramos, saímos dali decepcionados. "É apenas um cagão", dizia um. "Mais que isso, covarde", complementava a outra. E eu concordava literalmente com eles. Só hoje, tanto tempo depois, é que compreendo o que é "ser de outro mundo".