quarta-feira, 17 de abril de 2013

Música Medieval Brasileira: Cantiga do Estradar






Esta cantiga é uma metáfora da vida humana. É o que se analisa ao ouvir o relato dessa viagem interior em busca de si mesmo, verdadeiro rito de purificação cheio de provas e ensinamentos. A musica é feita também em espiral, seguindo as frequências do que seria uma proporção divina, nas voltas de um caminho ascendente e sem fim, em busca do estar em paz com seu Deus. Assim, constrói-se esta carta caatingueira com os elementos das estórias e dos mitos antigos, trazidos de um Portugal mouro e medieval, tão presentes nas memorias do povo sertanejo do Brasil.  A purificação se faz fundamentada na rocha da fé, força maior do peregrino que viaja a vida neste mundo, onde a estrada está sempre a tangenciar verdadeiros abismos traiçoeiramente engendrados pelo "Malino", minados de alçapões e laços perniciosos que arrastam as almas para reinos obscuros. Esta canção é uma verdadeira seção iniciática, fonte de inspiração para os que vagam pela senda da vida, em busca de realização pessoal e sabedoria para prosseguir a caminhada


Aqui a purificação se faz também, e sobretudo, pelo completo esvaziamento de si mesmo para alcançar a plenitude do amor inspirado nos grandes mestres que já pisaram nesta Nave, o amor incondicional pela vida e pelos seres vivos. E a cantiga, ligando-se toda ao tema do exílio já vivido, do karma que já se realizou e liberou o viajante para a volta ao lar, para tomar o caminho da subida ao paraíso,  já livre dos perigos da procura de si mesmo, da aventura do saber, do percorrer-se  -- uma transgressão sujeita a todos os riscos -- "isso se deu quando môço e eu saí a percurar".


Ao tratar do universo mágico da transmissão do ensinamento -- verdadeiro aparelho do saber verdadeiro -- se ajusta o dialeto caatingueiro à contemplação mística que só é dada aos "puros", pelo menos para os que realmente se esforçam para melhorar a vida no planeta, esta terra corrompida por crimes e rapinas, "marguiada" (mergulhada) em transgressão.





LETRA ORIGINAL DA CANÇÃO,  
 de ELOMAR FIGUEIRA MELO, 
sertão da Bahia, preservando o linguajar do sertanejo.



Tá fechando sete tempo
qui mia vida é camiá
pulas istradas do mundo
dia e noite sem pará
Já visitei os sete rêno
adonde eu tia qui cantá
sete didal de veneno
traguei sem pestanejá
mais duras penas só eu veno
ôtro cristão prá suportá
sô irirmão do sufrimento
de pauta vea c'a dô
ajuntei no isquicimento
o qui o baldono guardô
meus meste a istrada e o vento
quem na vida me insinô
vô me alembrano na viage
das pinura qui passei
daquelas duras passage
nos lugari adonde andei
Só de pensá me dá friage
nos sucesso qui assentei
na mia lembrança
ligião de condenados
nos grilhão acorrentados
nas treva da inguinorança
sem a luiz do Grande Rei
tudo isso eu vi nas mia andança
nos tempo qui eu bascuiava
o trecho alei
tô de volta já faiz tempo
qui dexei o meu lugá
isso se deu cuano moço
qui eu saí a percurá
nas inlusão que hai no mundo
nas bramura qui hai pru lá
saltei pur prefundos pôço
qui o Tioso tem pru lá
Jesus livrô derna d'eu môço
do raivoso me paiá
já passei pur tantas prova
inda tem prova a infrentá
vô cantando mias trova
qui ajuntei no camiá
lá no céu vejo a lua nova
cumpaia do istradá
ele insinô qui nois vivesse
a vida aqui só pru passá
nois intonce invitasse
o mau disejo e o coração
nois prufiasse pra sê branco
inda mais puro
qui o capucho do algudão
qui nun juntasse dividisse
nem negasse a quem pidisse
nosso amô o nosso bem
nossos terém nosso perdão
só assim nois vê a face ogusta
do qui habita os altos ceus
o Piedoso o Manso o Justo
o Fiel e cumpassivo
Siô de mortos e vivos
Nosso Pai e nosso Deus
disse qui havéra de voltá
cuano essa terra pecadora
marguiada in transgressão
tivesse chea de violença
de rapina de mintira e de ladrão







Um comentário:

  1. Sem dúvida é o caminho dos místicos, peregrinar entre as tormentas do ego até conseguir trazer a sintonia dos céus para o próprio coração. Afinal, os céus "descem" quando o merecimento se faz presente, quando a consciência se expande para compreender que o sofrimento não é necessário, é só mais uma ilusão.

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