Domingo fui
visitar a Rua Barão de Mesquita, 425, Tijuca, Rio de Janeiro.
Por trás
deste endereço singelo, que parece o de uma familiar padaria ou da casa da nossa
avó, escondia-se um dos símbolos do regime militar brasileiro 64-84. Eu diria até que se tratava de um dos sustentáculos
da ditadura, qual seja: a prática da repressão mais violenta e sem o menor pudor.
As outras duas estacas mestras de sustentação daquele regime eram a sua política
educacional e o alinhamento da nossa economia aos objetivos norte-americanos,
mas, isto é matéria para sociólogos e não memorialistas, como eu.
De modo que,
voltando à nossa conversa, eu dizia que fui visitar a antiga sede do DOI-CODI,
onde passei momentos que gostaria de esquecer. Não, eu não fui torturado, na
verdade não era sequer prisioneiro. Minha presença nesse lugar de tantas memórias se deu por conta da minha condição de recruta do exército brasileiro no ano de 1970, justamente do 1º Batalhão
de Polícia do Exército, que era o proprietário oficial do endereço. Fazia 40 anos
que não passava em frente ao prédio. Recordo-me que uma vez, há mais de 20
anos, tomando um taxi na Praça Saens Peña em direção à Vila Isabel, deu-me
curiosidade de pedir ao chofer que passasse em frente, mas, não tive coragem.
Acho que não estava ainda pronto para as emoções que sobreviriam apenas neste
domingo. Vou
poupar a todos nós o relato das noites de horror, dos gritos animalescos, das
famílias torturadas em conjunto e no atacado, da chegada de inocentes que
haviam sido arrastados por engano ou da chegada dos militantes políticos, presos em
combate ou no estouro dos frágeis aparelhos.
Não, eu também não quero lembrar
das operações especiais a que assisti, como na época do sequestro do cônsul suiço, em
1970, quando o agito era deca-duplicado, claro, pois a situação exigia pressa.
Não preciso dizer que nestas situações os sons infernais iriam acompanhar o ritmo do movimento e subir ao nível do insuportável. Sim, vou poupar-nos da inconveniência destas
memórias.
Entretanto, foram exatamente elas que emergiram nesta manhã de domingo,
enquanto eu olhava de frente para a entrada de serviço, localizada defronte a
pequena Praça Lamartine Babo, vejam que ironia, logo o nome do grande
carnavalesco, logo ele que não merecia uma "homenagem" dessas. Era por ali que entravam e saiam os comandos
em busca de novas presas. E eu ali,
olhando pro quartel, percebi que minha vista se turvava e meus óculos não
serviam pra mais nada, molhados que estavam. Num lampejo de consciência, tive
que recuperar o controle emocional, pois estava no meio da rua e as pessoas
passando ao redor, eu não podia fazer o “papelão” de chorar.
Dizem que medo
e ódio são a mesma coisa e que estão invariavelmente associados à raiva, não é mesmo? Eu aceito como dizem, visto que não sou propriamente
um especialista em psiquiatria e, afinal, tenho pouca intimidade com as teorias
de Wilhelm Reich, mas, lembro-me perfeitamente que quando organizei uma palestra do
Darci Ribeiro na minha universidade, lá por 1977, eu “literalmente” ouvi a
polícia ocupar o pátio da UFPR enquanto o Darci falava da tribuna, com seu
discurso sempre explosivo. Na minha insanidade eu já me via sendo levado ao
pau-de-arara, apenas por que era o coordenador cultural da minha entidade
estudantil. O que são as memórias, heim? Nos seguem pela vida afora ....
Passadas
minhas filosóficas reflexões, eis que estou agora confortavelmente instalado num
belo apartamento de frente para o morro do Pavão-Pavãozinho, Copacabana, e não
seria má ideia sair pra jantar algo bem agradável nesta noite domingueira, pois, afinal, amanhã o batente em Furnas vai ser
total. Além do mais,
estou convencido de que a rua Barão de Mesquita, 425, é apenas um endereço no catálogo do bairro da
Tijuca, Rio de Janeiro.
Será?
Comovente e poético o relato das tuas memórias, através das quais nos permites passear. Dois mundos em convívio: o da arte, beleza, alegria, carnaval, sabedoria do bem viver (e sobreviver), haja o que houver; em paralelo, memórias da bestialidade da qual o ser humano é capaz quando veste o papel do carrasco. Impactantes, é verdade, porém necessárias para nos relembrar ou fazer conhecer, a quem não tem ideia da tragédia, de aonde podemos chegar.
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