quinta-feira, 22 de março de 2012

Tragédia anunciada

Cada vez que se aproximava a época de seu compromisso no oeste, aquele meu amigo de botequim  vinha me pedir ajuda para a passagem de ônibus. Tudo por que, certa ocasião, eu lhe repassei uma passagem que ganhei do TRE-SC, por conta da minha convocação para o serviço de apuração eletrônica das eleições no interior do estado. Fomos de carro num grupinho, de modo que sobrou a passagem de ônibus.  Depois de muitos meses, talvez anos, eu lhe perguntei os motivos que o levavam a ter que se apresentar rotineiramente naquela  Comarca.

 --- "Foi pobrema de revólver ...."

Assim, curto e grosso. Eu não perguntei mais nada, mas, fiquei imaginando o tipo de pobrema que ele tinha arranjado, ou provocado, sei lá...  De vez em quando era comum aparecer no Campeche algum sujeito de jeitão estranho, assim como o deste rapaz. Gente desgarrada, que tinha vindo provavelmente fugido de alguma coisa ruim, mas sempre à procura de serviço e encosto. Este do revórver acabou  se encostando com uma nativa da terra, filha de pescador, gente boa e ingênua. Ele trabalhava aqui e ali, fazia uns biscates na construção civil ou limpava terrenos, essas coisas. Rapidamente começou a fazer filhos na jovem campechana e, assim que ganhou a confiança da família da moça, foi buscar um garoto que tinha ficado com a avó lá no oeste. O piá não tinha mais que cinco anos de idade. Era moreno, quase negro, mas de cabelos pretos escorridos, como o pai, velho gaudério sem eira nem beira, que tinha encontrado asilo nestes interiores da Ilha de Santa Catarina, terra amável e hospitaleira. O guri  logo se integrou com os manezinhos e foi crescendo.  

Mudei-me daquele local e não voltei ao bar. De vez em quando, via de longe o gaudério das passagens de ônibus, mas nunca mais falei com ele. Até que, há questão de dias, entrei numa loja de eletro domésticos e o guarda me cumprimentou "Como vai, seu doutor?". Surpreso, reconheci o mesmo personagem, agora num uniforme, atuando como segurança da loja. "Olá, amigo, há quanto tempo...", cumprimentei-o e fiquei batendo papo, já que ele havia me reconhecido. Conversa daqui, papo dali, e, lembrando do piá, eu lhe pergunto "E o seu filho que veio lá do oeste, como vai ?". O constrangimento foi grande, pois eis que o meu antigo jovem amigo, agora já um senhor de meia idade, não conseguiu esconder as lágrimas. Eu quis me desculpar e não sabia se dava tchau ou esperava ele parar de chorar, até que ele soltou o verbo.

--- "Não repare, doutor, mas é que não consigo segurar a tristeza. Ele já tinha até parado com as drogas, por que eu consegui um internamento pra ele lá na serra, ficou seis meses, trabalhava na roça, voltou com as mãos calejadas. Mas, por azar, a velha turma foi atrás dele. Não tenho certeza, mas, pode até ser que tenha tido alguma recaída e voltou a cheirar, de modo que pode ter ficado devendo grana pros demonhos. Foi achado dentro de uma vala lá pros lados de Palhoça, com duas balas na cabeça."



Eu também senti uma imensa tristeza por aquela tragédia inesperada. 
Não consegui falar nada,   fiquei apenas em silêncio,   até que ele me trouxe de volta à realidade: "Mas, ele me deixou um netinho, que eu mais a minha véia estamos criando".  Agora mesmo é que eu não sabia se o animava pro futuro ou se chorava eu. 
Será que este mundo seguirá eternamente sua rotina de carmas que não têm fim ??? 

    

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