segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Arte e Cultura. Sinônimos?

Estava se aproximando a data de aniversário do Lula. Os puxa sacos mais próximos confabulavam para decidirem o que cada um iria dar de presente, para não haver repetições ou constrangimentos. Um dos assessores mais íntimos do presidente, advertiu:

--- "Livro não dá, não, por que ele já leu um."

Eu posso fazer essas piadinhas com o nosso maior líder popular da história, por que fui um dos primeiros a trabalhar em seu favor e abrir caminhos para sua carreira política. Quando ele ainda era um iniciante em matéria de sindicalismo, para o qual foi levado por seu irmão comunista, ele mal despontando como liderança emergente de esquerda, nosso centro acadêmico na UFPR o convidou a fazer uma palestra em Curitiba. A assessoria de segurança da reitoria chamou a mim e ao presidente do Centro, procurando nos convencer da inoportunidade daquela promoção, ameaçando com possíveis represálias policiais e seduzindo com promessas de apoio financeiro, caso concordássemos em convidar alguém mais palatável. Isso soava como provocação aos nossos sonhos ingênuos, próprios da irresponsabilidade dos nossos vinte e poucos anos de idade. Fizemos a palestra e eu tive que passar listinhas de doações no meio da estudantada, para hospedar o homem num hotel, já que nenhum político da cidade ou cidadão bem estabelecido tinha coragem em receber o metalúrgico em sua casa. A chamada elite intelectual se considerava muito progressista, por que iam ao cinema de arte assistir "Mimi, o Metalúrgico", filme da fase política do realismo italiano, antes de terminarem a noite n'algum bar elegante, discutindo Marx, Trotski e Gramci, mas, diante de um metalúrgico de carne e osso, cada qual tratava de tirar o seu da reta. 

Apesar de ser um grande oportunista e manipulador, como várias vezes constatei pessoalmente, ninguém pode tirar de Lula o mérito de ter sido o presidente que rompeu com a lógica do capitalismo colonialista de obediência cega. Nem FHC moveu uma palha para se libertar, apesar de sua carreira acadêmica ter sido construída sobre o tema da dependência estrutural do terceiro mundo, em relação aos países centrais do ocidente. Lula foi que deu o grito de basta!, botando o FMI para correr, embora com todo cuidado, não tão forte para não parecer provocação, nem tão suave que parecesse medo. Durante seu mandato, nenhum dos seus ministros tirou os sapatos na aduana dos Estados Unidos, episódio lamentável ocorrido com o ministro das relações exteriores do Brasil no governo FHC.

Eu uso a comparação de Lula e FHC para levantar a tese de que a cultura não é essencial para a gestão pública nem para uma carreira política de sucesso. Ao contrário, até atrapalha, às vezes. O grande pensador sociológico brasileiro, Florestan Fernandes, mestre de FHC, chegou à câmara dos deputados levado pelos votos populares dos petistas sem instrução nenhuma, feito Lula, por que Florestan era muito boa gente, mas um péssimo comunicador.  Consta que tentou ser vereador em São Paulo, muito tempo atrás, e um amigo lhe aconselhou que produzisse algum material de propaganda, algo simples que pudesse ser lido no trem ou no ônibus, quando os eleitores iam e voltavam do trabalho. Ele fez uma cartilha com doze páginas só de textos, chamada "pequena história da classe operária no Brasil", he he he.

Outra coisa que não depende de cultura é a arte. O que a manifestação artística precisa é inovação e sensibilidade, mas não conhecimento acadêmico ou linguagem prolixa. Fora da arte clássica, perfeccionista, o que geralmente conta é a capacidade de impacto frente ao público. Fiquemos no campo da música, que é a especialidade deste Blog. Uma canção como "Arreuni". de Chico Maranhão, é absolutamente desprovida de capacidade intelectual ou recursos instrumentais, e poderia ser feita por qualquer trabalhador do campo, sem qualquer instrução musical. Mas, impressiona por ser um primor de sensibilidade.



Outra característica marcante da arte é sua capacidade de provocação aos valores estabelecidos. No vídeo que vem a seguir, um artista com extensa formação erudita em música e teatro, se utiliza das técnicas e conhecimentos que acumulou em ambas as formas de expressão, para provocar na platéia reações de ódio e admiração, dependendo se o espectador se choca com manifestações fora do padrão conservador, ou, ao contrário, se é levado à emoção pelo rompimento artístico com as regras de boa educação.


sábado, 18 de fevereiro de 2012

LUGARES IMPROVÁVEIS - carnaval sem mulatas


A Corrientes moderna e bem estruturada.

A Corrientes tradicional, à beira do Rio Paraná, é um lugar de descanso tranquilo.

































O planeta mais uma vez assiste assombrado ao carnaval brasileiro. Não há nada similar no mundo em termos de festa profana. Diz-se que os blocos mais populares de Rio de Janeiro, Salvador e Recife arrastam atrás de si mais de dois milhões de participantes cada um. É mais que as populações de muitas capitais da nossa América, mesmo descontando o possível exagero...

Lembro-me que na adolescência, quando ainda não estávamos na aldeia global internética, íamos ao cinema na época de carnaval para assistir ao jornal que antecedia ao filme principal, o qual invariavelmente mostrava o rebolar das mulatas nos ensaios e apresentações. A dança demoníaca levava os machos do gênero humano ao delírio erótico.  Mas, tais deusas do sexo eram inatingíveis, muito longe, desde onde se deixavam filmar no mundo exótico do paraíso perfeito, lugares fantásticos onde mulheres daquele porte andavam por avenidas e becos pobres, morando em favelas e disponíveis aos aventureiros que tivessem a coragem de empreender a sonhada conquista. Raramente uma passista daquelas conseguia ascensão social, ao contrário de hoje, quando as artistas do cinema, televisão, teatro, modelos e até socialaites, de todas as categorias, disputam a primazia de aparecerem na frente da bateria da escola de samba, afim de abrilhantarem as telas eletrônicas mundo afora com suas nádegas perfeitas, em imperfeito descompasso com os carnavais do passado, quando tais predicados eram apenas sugeridos. Confesso que para mim as mulatas da minha adolescência tinham mais graça e atração erótica, do que o festival de órgãos genitais que se vê hoje em dia. Como profetizou Nelson Rodrigues, a gatinha moderninha aparece semi nua para comprar um picolé e o negão do carrinho de sorvetes se mostra mais interessado na venda do produto do que na cliente. São os tempos do trivial e da banalidade !

O carnaval, em si, é uma festa profana que se tornou popular a partir do ano 1270 na Europa medieval, então impregnada de suas bruxas e pecados, vejam só... Por isso mesmo, esta festa sempre esteve associada com o promíscuo e o proibido.  Quem estudou a história da revolução francesa já leu ou entrou em contato com filmes mostrando a raínha Maria Antonieta, de família austríaca extremamente católica, saindo clandestina do Palácio de Versailles, afim de se divertir incógnita e mascarada no carnaval do centro de Paris.   

Mesmo fazendo parte dessa vertente fantasiosamente erótica e proibida, o carnaval brasileiro extrapola todos os limites, inclusive os financeiros: o orçamento de uma escola de samba chega a 12 milhões de reais por ano, em grande parte suprido pelo poder público e complementado pelo jogo do bicho e narcotráfico.  As comunidades pobres, onde normalmente as escolas de samba se instalam, pouco contribuem, além do talento, da disposição ao trabalho e o suor nas quadras de samba e na avenida do desfile principal.  E muito tesão, claro!


O carnaval de nossos vizinhos latinos americanos é completamente diferente, totalmente ingênuo, sem a malícia e o erotismo que nos caracteriza. Veja o exemplo do mundialmente famoso "Carnavalito", tão conhecido como nossa aquarela do brasil, só que produzido e inspirado nas regiões frias da Quebrada de Humahuaca, situada nos cafundós da fronteira entre Bolívia e Argentina, nas alturas andinas.













O Mardi Gras (terça feira gorda) de New Orleans, nos Estados Unidos, também é uma inocente festa onde enormes e envelhecidas senhoras ficam nas sacadas mostrando ou sugerindo mostrar os seios, enquanto os transeuntes lhes atiram moedas. Sem dúvida, o carnaval mais entusiasmado da América extra-Brasil é o da cidade de Corrientes, um polo herdado de índios guaranis, aventureiros e escravos negros fugidos, situado estrategicamente no encontro dos rios Paraná e Paraguai, encravado na fronteira Argentina com o Paraguai. Apesar de espanhola, Corrientes se manteve independente de Buenos Aires enquanto pode resistir.  Assim como no vizinho Paraguai, o carnaval correntino no passado se resumia a brincadeiras de uns jogarem água nos outros. Para apagar o fogo do futuro, pois hoje a inocente festa foi invadida por modelos alienígenas, como se vê neste clip a seguir.  





    

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Velhos campos de algodão

Pode parecer uma roda de samba no Rio de Janeiro. Mas, é uma "roda de blues" no Mississipi.

Pouca gente sabe que o Rock and Roll começou como música caipira dos trabalhadores do campo, feita por negros nos Estados Unidos. A história veio a partir dos hinos cristãos, principalmente os da Igreja Batista, que era majoritariamente a religião dos fazendeiros brancos do sul dos Estados Unidos. Se estivessem aqui no Brasil, submetidos a uma cultura menos severa e purista do que a dos anglicanos, provavelmente os escravos da América do Norte também desenvolveriam sua vertente cultural fincada em raízes africanas, como lhes foi permitido nas colônias dominadas por Espanha e Portugal, tais como Cuba e Brasil, entre outras. Mas, naquelas paragens sob o domínio da arrogante Inglaterra, os escravos, além de serem considerados apenas e tão somente ferramentas de trabalho, não tinham direito a qualquer tipo de vida social ou gratificação de qualquer ordem. Parece que, infelizmente, precisavam serem alimentados. Pior que isso, davam prejuízo ao fazendeiro por que morriam de tristeza, ao serem impedidos de expressar de alguma forma a intensa religiosidade que trouxeram de suas tribos africanas. Diante isso, os colonizadores WASP (brancos, anglo saxões e protestantes) perceberam que estavam perdendo dinheiro com a morte prematura de seus escravos. Diante dessa ameaça ao sucesso da colônia, os líderes religiosos e políticos confabularam entre si e propuseram uma saída cultural ao problema: aos escravos seria dada permissão de participarem dos cultos religiosos dos brancos. Todas as demais manifestações religiosas ou artísticas continuaram proibidas, mas, os escravos podiam ficar lá no fundo das igrejas. Poderiam até cantar os hinos cristãos. 



Com o tempo os hinos foram se modificando e ganhando contornos mais vibrantes, devido a participação dos negros, que cantavam como se fosse a última coisa que fariam na vida. Ou seja, cantavam com a alma. Soul music.  Os pastores e líderes religiosos gostaram muito dessa nova forma de expressão perante os céus, tanto que começaram a incentivar a participação dos escravos nos coros das igrejas de brancos, mesmo a contragosto de alguns fazendeiros. Com o lento passar das décadas ao longo de dois séculos,  os negros foram conseguindo mais progresso, tais como produzir cantos próprios para serem cantados durante os trabalhos na lavoura. À essas canções, os brancos começaram a chamar "spirituals", para os diferenciar dos hinos compostos por brancos. 

Então veio a guerra civil (1860) e muitos escravos fugiram para se juntarem às forças do norte, que lutavam contra o exército dos fazendeiros do sul. Um grupo desses negros combatia na Carolina do Sul, onde compuseram uma canção na qual expressavam sua esperança de que terminariam a guerra vivos, graças ao Arcanjo Miguel, que os livraria do infortúnio da morte no campo de batalha. Para isso, usaram como metáfora a travessia do Rio Jordão, onde o rio representa a morte. Hoje esta canção é considerada patrimônio cultural dos Estados Unidos, vejam só como o mundo dá voltas, um dos maiores clássicos da música gospel. 


Com a libertação, os negros se espalharam pela América, mas continuavam buscando inspiração nos velhos tempos, quando a mama ainda balançava o berço da criança, dentro de uma velha cabana perdida no meio das plantações de algodão...



Eu sei, ninguém entendeu nada, pois o sotaque caipira é fogo. Vamos com mais calma. 

Hoje, o som e o público é outro. Mas, continua sendo música de caipiras, com a diferença que alguns  caipiras embranqueceram e enriqueceram. Outros, de estranhos olhos fechados, apareceram no outro lado do mundo ....



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Grande sertão. Veredas da alma.





Foto minha da Serra da Canastra. À poucos metros dali, nasce o Rio São Francisco.

Não é fácil escrever sobre o Grande Sertão. Ele não é facilmente acessível. Existe uma coisa que é a terra em si mesma, pobre e triste. Não dá muita alegria entrar por estradas poeirentas, povoados sem graça, aquela vida de interior, sem TV a cabo, sem Internet, sem lavanderias automáticas, sem ar refrigerado, sem companhia para analisar a conjuntura econômico-política enquanto se bebe um whisky de qualidade.  Aqui não há nada.   A primeira camada do grande sertão,  a que está mais aparente, se mostra com todos os seus defeitos e incompletudes.

Não penses que vais ouvir uma viola e um cello afinados como o da música que se houve nas capitais.  Não penses que essa música foi produzida num desses cantões do sertão, sem eira nem beira. É óbvio que a gravação foi feita em Belo Horizonte, com músicos treinados no Palácio das Artes, maestros e compositores passados nas escolas de São Paulo, Rio, Paris e Nova Yorque. Não penses que terás acesso imediato ao fantástico mundo dos contos de Guimarães Rosa e aos sonhos da meia noite. 

Pra encontrar o sertão é preciso ir bem mais longe. Não será na primeira camada que vais achá-lo. É preciso antes perder-se de si mesmo. É preciso deixar sua alma viajar em madrugadas silenciosas, quando somente o cio dos felinos alimenta a noite de sonidos. Aos poucos você vai se afastando da realidade nua e crua, distanciando-se do trivial e do bruto, para galgar espaços mais rarefeitos, onde o sonho possa transmutar a realidade pelo mundo da fantasia. 



Por do sol no Grande Sertão. Veredas da Alma.

Quando tiveres atingido o ponto de não mais te importar com o que se passa ao teu lado, então terá chegado o momento de adentrar ao grande sertão. Vá sozinho e, de princípio, não ligue tanto para as gentes. O mais certo é prestar atenção nos bichos: cavalos, jegues, bois e vacas, que são os mais comuns. Se der a sorte de encontrar um animal em estado selvagem, será como tirar a sorte grande no prêmio principal da essência vital.

Quanto mais nos permitirmos chegar perto da natureza dos seres do sertão, sua fauna e flora, mais perto estaremos de compreender as veredas. Quanto mais percebermos a presença metafísica do sertão, mais ele se estará introduzindo em nossa alma, a ponto de nos transformar em pedra para falarmos com as pedras, em bicho para falarmos com os bichos, em terra, ar, fogo e água para falarmos com a Mãe Natureza e em humanos, como nós mesmos, para falarmos com o Absoluto. 







Estação das docas de Belém do Pará


Até hoje, Belém mostra com orgulho sua herança do ciclo da borracha.   Um exemplo são os galpões da antiga Companhia Porto do Pará, nas docas da cidade, hoje transformados em centro cultural e turístico de alta qualidade.  Mesmo que os caboclos que moram nas ilhas não compreendam uma só palavra escrita, nem saibam sua localização no mundo e sequer saibam o que existe do outro lado das imensas águas, Belém do Pará é o marco civilizatório do norte do Brasil, seja para o bem, seja para o mal. E quem os haverá de separar? 

A Estação das Docas, conforme foi chamada na licitação inicial em 1897,  possuia 1870 metros de cais em 13 armazéns de estrutura metálica. Só ficou pronta em 1914, para você ver que já naquela época as obras públicas eram enroladas ao máximo, com propósitos que certamente não eram o do menor custo. Qualquer semelhança com a atual duplicação da BR101-Sul não é mera coincidência!  Mesmo ao longo do tempo de construção, a área foi utilizada para exportação da borracha, gerando fabulosos lucros para os negociantes e para o país. Infelizmente, quando ficou completamente pronto o Porto, já se acabara o boom econômico da borracha e a primeira guerra mundial batia às portas européias, atrapalhando os negócios. Então, o porto entrou em decadência, como tudo o mais. Fiquei imaginando por onde eles estariam exportando a quantidade absurda de alumínio que produzem atualmente no interior do estado. No dia seguinte, descobri que eles construíram um novo porto, no ponto da baía de Marajó onde deságua o Rio Tocantins. Assim, o transporte fica facilitado e o lucro é maior, devidamente embolsado pelos empreendedores estrangeiros, enquanto a infra estrutura e a energia elétrica é totalmente caipora. Me fez lembrar da piada do brasileiro bonzinho.
Quatro ou cinco dos antigos armazéns das Docas, no centro da cidade,  foram transformados em áreas de lazer. A maioria dos estabelecimentos apresenta atendimento de padrão internacional, vendendo objetos de arte e servindo os pratos da culinária local, basicamente uma mistura de componentes indígenas e africanos. Sobrou pouca influência da culinária portuguesa. Na verdade, em toda a cidade não vi nenhum restaurante de comida portuguesa, que adoro, mas uma grande profusão de pizzarias, que detesto. Tirando os peixes, eu não achei graça nenhuma nas comidas típicas!  Deve ser a falta de costume.  Mas, o ambiente das Docas é de primeira linha e a segurança é total. Os carros, inclusive os taxis, estacionam no páteo interno,  com cercas gradeadas de dois metros de altura e guarnecidas permanentemente por vigilância da polícia militar. Dentro dos armazéns o ar condicionado te faz imaginar num cenário novaiorquino e a arquitetura super moderna te leva para um clima futurista.
A marca registrada em Belém, além das famosas mangas plantadas nas ruas, são as sorveterias. Aqui nas Docas há somente uma, mas, que sorveteria!!!  Nos balcões de vidro, imensos e transparentes, formando um redondo no meio do qual estão as atendentes, você pode observar os sorvetes que te esperam. Dezenas de sabores tradicionais, como uva, creme de caramelo, maracujá, limão, etc.  E mais alguns completamente desconhecidos do visitante alienígena, como eu:  açaí, bacaba, cupuaçu, bacuri, tucumã, muruci, piquiá, taperebá, e por aí vai... Provei o de cupuaçu, de bacuri e de bacaba. Quando provei este último, chamei-o de babaca e as atendentes do balcão caíram na gargalhada. Como sorriem esses paraenses! Tal qual crianças, em tudo eles acham graça. E como são simpáticos!  Ali mesmo, nas Docas, uma moça se aproximou e puxou conversa comigo, enquanto assistíamos um espetáculo folclórico de dança e músicas indígenas. Conversa vai, conversa vem, ela disse que eu era muito bonito e  convidou-me para irmos ao MEU hotel.  Declinei gentilmente do convite, por que tenho medo de estranhos e também devido a seu evidente mal gosto estético.   Infelizmente, fiquei sem saber o que ela queria comigo e meu hotel.


JERI, A PRAIA QUE COACOARA















Na língua tupi significa "terra dos ventos uivantes".  Bueno, se não é, devia ser.   Na verdade, Jericoacoara significa "jacaré tomando banho de sol", segundo a versão oficial da prefeitura do município. Mas, há várias outras versões, como "casa de jericó", "gruta das tartarugas marinhas", etc. 

Em linguagem nordestina quer dizer "jacaré quarando ao sol".  Aqui, à exemplo de todo o litoral cearense, os ventos predominam 23 horas por dia. Quando acaba um, começa outro, no lado contrário. Ou do lado de lado. Nossos óculos, bolsas e apetrechos deixados na areia da praia ficam impregnados da fina poeira que o vento levanta nas dunas. Como há dunas por todos os lados, é inevitável que alcance as praias e a pequena vila que virou o centro do mundo moderno.

É uma espécie de Rua Gomes Freire ou Visconde de Pirajá, com as mesmas griffes internacionais, o mesmo público dito "diferenciado", a mesma badalação e até o mesmo sotaque internacional, percebido nas conversas dos vizinhos de mesa ou de praia. Para aqui convergem todas as línguas faladas no mundo rico. Só que ninguém veste calça comprida, nem camisa social, nem estampa o ar de bem informado e updateado com a última tecnologia. É uma nova aldeia hippie, como foi Canoa Quebrada há trinta anos, incrementada com o padrão de consumo dos dias atuais. Mas, não chega a fazer o estilo Yuppie, que é o contrário da simplicidade hippie. Não, aqui o doutorzinho branquelo desembarcado em Fortaleza, diretamente de Oslo, Genebra ou algo assim, bate papo com o caboclo jericoarense que fala seu inglês com a mesma naturalidade gramatical de um músico de banda de reaggie. Ele certamente aprendeu na lida do dia a dia com os gringos. Quase sempre mal conhece o português e não tem nem curso básico completo, mas fala três ou mais línguas. Há uma lenda de um sujeito, dono de pousada e restaurante numa praia isolada, que fala oito línguas, sem nunca ter passado da pequena Jijoca, porta de entrada para o mundão de areia e sofisticação.   As pousadas e resorts na beira da praia são mais elegantes e bem transadas que qualquer cinco estrelas do litoral brasileiro. Dão um banho na caretice do Costão do Santinho, por exemplo, considerado o melhor resort de praia do país. Certamente não tem os recepcionistas ridiculamente vestidos como motorista de madame, que encontramos nos hotéis chiques. A música ambiente também não será uma orquestra de violinos tocando fugas de Bach ou valsas vienenses, mas o visitante há de encontrar um monte de crioulos bonitos, de ambos os sexos, todos alegres e sorridentes como se tivessem fumado o último baseado há cinco minutos. Ao mesmo tempo em que trabalham no atendimento gentil da clientela, sugestionam danças sutilmente erotizadas, ao som de uma banda de reaggie. Como tem muito cliente das antigas, Pink Froid toca direto, às vezes reescrito em outro ritmo por bandas das quais você e eu nunca ouvimos falar.

Um detalhe interessante desse mundo moderno é que o padrão de turismo sexual mudou. É raro você encontrar um gringo barrigudo ao lado de uma sensual caboclinha nativa, como antigamente. Agora, o que se vê é tremendos tribufus europeus do sexo feminino desfilando com musculosos representantes da macheza cearense. E os rapazes fazem questão de prestar serviços com grande assiduidade e publicidade. Beijam as companheiras clientes o tempo todo, com grande volúpia e (talvez) falso tesão, eu suponho, dado o desconforto da evidente diferença de padrão estético e de idade. Eles parecem não se importar e até fazem questão de mostrar ao público que estão em plena atividade, talvez até como propaganda para futuras transações. Claro, também há as belas loiras deslumbrantes, sobre suas pranchas de kitesurf ou coisa assim, aquela geringonça amarrada num paraquedas que ziguezagueia nas ondas, ao sabor dos ventos. Essas, que eu saiba, já estão suficientemente paqueradas por todos os homens presentes, nativos ou não, e recusam qualquer oferecimento erótico, ao contrário, elas se fazem de inatingíveis e misteriosas. Também não fazem questão nenhuma de tentar falar a língua local.

Intrigado com ouvir tanta pronúncia em espanhol e curioso para saber a procedência daquela gente, intervi em duas ou três rodas de conversa, perguntando educadamente a origem dos falantes, dizendo tratar-se de uma pesquisa que eu fazia para fins de uma dissertação de antropologia. É, amigo leitor, cara de pau nunca me faltou. Descobri que não havia nenhum latino americano, sequer algum mexicano. Eram todos de diferentes regiões da Espanha, daí a diferença de acentos. Eles podem até estar em crise econômica, mas continuam bons consumidores e excelentes animadores de bares.     

A aventura de cruzar as dunas desde Jijoca é um capítulo à parte. Só posso dizer duas coisas: 1) é uma sensação maravilhosa; e, 2) vão tentar te enganar no preço. Desconfie e cheque todas as ofertas de transporte e de passeios. Nesse quesito, só digo uma coisa: o custo da tua estadia vai cair dez vezes em relação aos preços iniciais que tentarão te cobrar.


O vídeo e as fotos foram feitas pelo autor. 

Tango


Está comprovado que o Tango era música de "marginais e prostitutas". Esta verdade histórica já não escandaliza nem o arcebispo de Buenos Aires.   As origens também são conhecidas, a batida milongueira saudosista dos criollos vindos do pampa para tentar a sorte na capital,  idem idem para os imigrantes operários italianos e alemães. No início, estava intimamente associado ao Candombe, música dos escravos negros (sim, a Argentina também teve escravos negros, mas, isso já é outra história).  O certo é que não se tratava de música que as famílias de bem olhassem com bons olhos. A forma de dançar, por exemplo, era tão sensual que apenas as mulheres da prostituição a aceitavam, e talvez venha daí a lenda de que os gaúchos dançam homem com homem. E era verdade, pelo menos nas vilas ao longo do Rio de la Plata. Também corre como anedota a afirmação de que o bandoneon saiu da igreja para entrar na putaria. Com todo respeito, isso também é verdade, pois os imigrantes alemães praticavam seus ritos religiosos ao som desse instrumento estranho, que parece uma sanfona pequena e de fole comprido. Ele acabou substituindo a flauta, instrumento que fazia os solos nos antigos primeiros tangos.   Depois de quase um século e meio de história, o tango continua atual como nunca. Tirante os eruditos, a chamada música clássica, este é de longe o ritmo mais apreciado no mundo. Tem o Rock and Roll para garantir a máxima de que a exceção confirma a regra, mas, o Rock já serviu para tantas coisas que o balanço original dos negões do Mississipi, recolhido e abrancalhado por Elvis Presley,  já não existe.   O Tango, ao contrário, permanece o mesmo, dentro de sua diversidade histórica. Está em todos os países e não há uma cidade, das grandes às medianas, que não ostente seu clube de dança ou escola de tango. Na França cheguei a ver cartazes na pequena cidade de Numes, a capital dos perfumes, anunciando que no final do ano o casal que melhor se saísse nas pistas receberia um prêmio especial. Qual era? O mais desejado de todos, uma viagem a Buenos Aires, com curso de tango numa escola autenticamente portenha.

Há uma coleção infindável de relatos históricos e acadêmicos sobre o Tango, mas, para o apreciador leigo, é possível identificar quatro fases bem distintas na evolução desse estilo. Num primeiro momento, o Tango era apenas instrumental e animava os bailes dos subúrbios. O primeiro tango a fazer sucesso mundial foi composto num bar de Montevidéo em 1917. La Cumparsita é cercado de lendas e mistério, a começar pelo nome. Disse-me um músico argentino que se tratava de uma gíria portenha para designar a gorjeta que os músicos recebiam durante as apresentações. Também já li que era o nome que se dava às amantes infiéis, coisa aparentemente banal no mundo do tango, a ponto de receber uma gíria só para ela. Com o tempo, se escreveram vários poemas para a música, que sempre esteve em destaque, como nessa apresentação em Paris do cantor popular espanhol Julio Iglesias: 


Um dos tangos mais conhecidos,  À Media Luz ("Corrientes, 348"), é dessa fase e também foi composto em Montevideo,  vindo a  receber a famosa letra quando Carlos Gardel o lançou em 1925, para o sucesso extraordinário que faz até hoje, 87 anos depois...  





Gardel foi o responsável pela grande expansão da popularidade do Tango, que viveu seu apogeu com a obra deste uruguaio que cresceu na feira popular de El Abasto, em Buenos Aires. Sobre sua controvertida origem, ele dizia com um olho piscando maliciosamente: "Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade". Morreu num desastre de avião em 1935, mas os argentinos seguem dizendo que ele canta cada dia melhor. No entanto, com tantos uruguaios na história do Tango, não poderia faltar mais um: Anibal Troilo. Foi o maior bandoneonista que se tem notícia, além de compositor primoroso. Ele é tão importante que seu aniversário foi oficializado como o Dia Nacional do Tango. Organizou memoráveis orquestras, ensinou Piazzolla a tocar e compôs aquele que é considerado pela crítica como o mais belo Tango de todos os tempos.




A terceira etapa corresponde ao primeiro enfrentamento real entre o tradicional e o moderno. Cansado das mesmas histórias e dos mesmos arranjos, o público aos poucos foi se afastando. Na década de 1960 o Tango estava em evidente decadência. Então surge um músico acadêmico, com origem longe de Buenos Aires (Mar del Plata), cujo pai milionário o mandou a Nova Yorque esperando que ele se transformasse num grande condutor de sinfônicas. Porém, quis o destino que ele entrasse na orquestra de Anibal Troilo para aprender a tocar a música da cidade que havia escolhido para viver. Parece que aprendeu mal, pois revolucionou o estilo de tal maneira que passou anos sendo perseguido e chingado pelos tradicionalistas, enquanto a juventude só queria saber de rock and roll.   Ele resistiu a tudo e a todos, morrendo famoso e consagrado como um dos melhores artistas de sua geração.
  


Na quarta etapa entramos há uns dez anos atrás, quando a música eletrônica tomou conta do mundo. Entre raps, fusions, funks e que tais, um grupo de músicos franceses e argentinos teve a idéia de assumir os novos acordes e ao mesmo tempo manter os instrumentos da música tradicional. Era o mundialmente respeitado Gothan Project. Agora, há uma febre de tango eletrônico correndo pelos Estados Unidos, particularmente na comunidade imigrante  latino americana, tanto que chama a atenção das grandes corporações interessadas no mercado que esses ouvintes representam. Não por acaso, a Rede Globo colocou como tema de uma de suas novelas de maior sucesso uma canção do grupo Bajofondo, onde atuam jovens músicos argentinos radicados nos Estados Unidos. Eles fazem uma música totalmente diferente,  numa nova arquitetura musical, o mesmo e velho Tango.










Lençõis Maranhenses com jeitinho brasileiro


Há vários tipos de turistas estrangeiros que nos visitam. Existem os que gostam de conforto, preferindo hotéis cinco estrelas na frente da Praia de Copacabana, não se importando de conviver  perigosamente com os riscos de uma metrópole cada vez mais violenta. Outros, preferem entrar pelas selvas adentro, buscando  o inusitado e o selvagem, atraídos pelas belezas naturais e um tipo diferente de perigo, aquele existente da natureza e seus seres reais ou imaginários. Para esse grupo, a Amazônia evidentemente é o paraíso. Um terceiro tipo é o aventureiro, normalmente jovem e com pouco dinheiro, viajando de ônibus atrás de belas paisagens e costumes diferentes. Esta rapaziada não se ofende com a miséria do povo ou a falta de higiene e você os encontra nos mais diferentes lugares, admirando as Cataratas  do Iguassu, cruzando o Pantanal, subindo as montanhas de pedras das chapadas do planalto central, e, principalmente, caprichando no bronze das nossas praias tropicais, quanto mais longe e isoladas, melhor. Eu não sei onde é que ficam sabendo da existência de lugares como Jericoacoara ou Lençõis Maranhenses, onde encontrei vários deles há poucos meses, quando por lá andei. Em São Luiz, encontrei um rapaz de Barcelona querendo saber detalhes dos Lençõis e, para minha surpresa, ele sabia mais coisas do que eu ou os demais brasileiros do Maranhão. Pedi para ler o guia impresso que ele trazia e vi os textos escritos em Catalão, contando coisas inexistentes nos guias brasileiros, como a localização de um restaurante numa praia isolada, o cardápio, o nome do proprietário e até o detalhe de que havia galinhas no terreiro. Ele se encaminhou para a primeira agência de turismo que o porteiro do hotel lhe arranjou e não ouviu meus conselhos de que era necessário pesquisar mais opções. Outra turista, esta holandeza, tinha um perfil diferente, a começar pela profissão. Era funcionária da ONU, falava várias línguas e já tinha estado em todos os países perigosos do mundo. Tinha uma idade avançada em em relação ao grupo. Fiquei surpreendido de vê-la em Barreirinhas, sozinha, entrando num passeio de barco pelo Rio Preguiças abaixo. Naquele passeio ela teve uma lição sobre o jeitinho brasileiro, embora eu creia que não a tenha aprendido. Aliás, acho que ela até hoje não entendeu nada.

Entramos doze pessoas no barco, entre moças e rapazes, todos de perfil jovem aventureiro, menos eu e a holandeza. Assim que zarpamos, o piloto começou a contar das belezas que existiam um pouco abaixo do lugar até onde iria oficialmente o passeio. Ditas as maravilhas, todos se interessaram em conhecê-las, ao que o piloto malandramente explicou que poderia ir, porém, como não estava na programação, ele cobraria quinze reais a mais de cada um, desde que todos concordassem. Apenas duas pessoas não disseram sim, eu e a holandeza. Mas, também não dissemos não. Quando voltávamos, no final do dia, o piloto começou a cobrar o passeio extra, que, afinal, havia sido um fracasso, não foi nada daquilo que ele tão habilmente havia descrito. Mas, trato é trato, e todos começaram a sacar a grana do bolso. Quando chegou na holandeza ela, sem entender patavina, questionou "Why"? O piloto pediu socorro e várias pessoas tentaram inutilmente explicar-lhe em inglês o motivo daquela cobrança. Ela só balançava a cabeça: "I do not understand. Why?".

Eu havia percebido na hora do embarque que a holandeza falava em espanhol com alguém, então, saquei meu portunhol e tentei lhe contar o que estava se passando. Ela mostrava o papel do programa oficial do passeio, dizendo simplesmente "pero, esto no está acá". Foi difícil convencer a mulher de que no Brasil, nem sempre vale o que está escrito.



Falando mal de nossa capital


Nos primórdios da apuração eletrônica das eleições, fomos num grupo de voluntários profissionais de informática de Florianópolis trabalhar no extremo oeste catarinense. Estávamos tomando umas cervejinhas na recepção do hotel, quando o porteiro começou a falar mal da capital.

--- Nós aqui trabalhamos e produzimos para sustentar vocês!

Os demais colegas apenas riram, mas, eu, que não levo desaforo para casa, fiz ver ao cidadão que sua concepção estava equivocada. A capital produz, sim, muito trabalho, só que diferente da roça onde nosso amigo provavelmente cresceu. No entanto, ele não dava o braço a torcer.

--- Que nada! A capital é um bando de vagabundos e políticos sustentados com o nosso suor.

Meus amigos foram se levantando e se mandando, enquanto eu continuava a peleja com o porteiro do hotel.  "Você tem razão em parte, mas, a verdade é que esses vagabundos e políticos foram mandados para lá por vocês próprios". 

--- O senhor diz assim por que deve ser um deles.

O pobre homem não sabia que eu estava ali a serviço da comunidade, num trabalho honroso e gratuíto para impedir as costumeiras fraudes eleitorais. Além do mais, não tinha nenhuma responsabilidade com o assunto, uma vez que também sou do interior. Lembrei-me da nossa grande alegria em Maringá, quando a nossa capital, Curitiba, aparecia na mídia nacional como exemplo de centro urbano. Mais tarde, senti na própria pele a discriminação por falar e apresentar uma aparência diferente, quando os arrogantes curitibanos nos chamavam a todos de pés vermelhos,   apelido que hoje em dia é um elogio. Mas, nunca nos passou pela cabeça deixar de amar a nossa capital. Em Santa Catarina ocorre o contrário, diferentemente do resto do país. E não é só um preconceito das classes humildes. Visitei uma grande empresa de software de Joinville, o município mais rico do estado,  buscando opções para comprar um produto que atendesse as especificações da licitação que eu coordenava, valor aproximado de dez milhões de reais. Quando fui apresentado ao diretor da empresa, ele saiu-se com esta:

--- Quer dizer, então, que largastes a vagabundagem e as gatas das praias para visitar os que trabalham?


Compostela, campo de estrelas

Peregrinas norte americanas chegam cansadas 
e se dão o direito de alguns momentos de reflexão. 
(foto minha)

Cheguei em Santiago de Compostela por volta das dezoito horas. Estava começando o outono e o dia já se tinha transformado numa suave penumbra, quando o excelente serviço de informações local me disse que estávamos a um par de quilômetros do centro histórico, e que no caminho existiam vários hotéis. Sendo assim, continuei caminhando devagar, carregando nas costas a leve mochila que me acompanhava.  

Quando a rua se transformou num calçadão avistei um simpático hotel e me dirigi à portaria. 


--- "Busco habitación para una persona", disse no meu espanhol carregado.
.
--- Brasiiiiileiro? Pergunta a moça com um sorriso na face.

--- Si, soy brasileño. Pero, como lo sabes?

---  Por el accento (sotaque). 
--- Mas, então, já que és brasileiro, vamos falar a nossa própria língua.

Foi quando me dei por conta que todos ali falavam português, quero dizer, galego, com um mínimo de diferenças idiomáticas. Por exemplo, "uma', eles dizem "unha", "pedra", eles dizem "petra", e assim por diante. Satisfeito da vida, acomodei minhas coisas no quartinho que me arranjou a bonita moça e saí para conhecer o centro medieval. Milhares de pessoas caminhando pelas ruelas, todos branquelos europeus e norte americanos, a mais linda e saudável juventude ocidental, encantada com aquela cidade milenar, até que se me apresenta um negão gordo, vindo devagar na direção contrária, subindo a leve inclinação de la calle. Pensei comigo, "este só pode ser brasileiro" e, ao nos cruzarmos, eu disse bem claro "E aí, companheiro, tudo bem?"   

O negão estancou no meio da rua e, abrindo um sorriso escandaloso, me disse. "É a primeira vez que um estranho me cumprimenta nesta cidade de merda. Isto merece uma comemoração e vou te pagar uma bebida da tua preferência. Vem comigo". Era colombiano e trabalhava como porteiro noturno de um prédio residencial. Deu um trabalho danado rejeitar a oferta que me fazia em agradecimento a um simples "buena noche"...




É inegável a influência ibérica 
na cultura brasileira. 


Então, percebi que Compostela é um centro de peregrinação dos descolados do mundo inteiro. Gente jovem, que se aventura pelo Caminho em busca de emoções, muito mais do que religação com a sua suposta origem divina. Milhares de bares espalhados pelo centro, onde jovens do mundo inteiro se paqueram no entorno dos edifícios católicos milenares e da espetacular catedral, que está ali para lembrar a lenda de São Tiago, mandado pela própria Nossa Senhora a procurar o fim do mundo, guiado pelo brilho espetacular das estrelas que lhe apontavam o caminho no campo aberto.

Compostela é exatamente o oposto dos demais centros de peregrinação católicos, todos conservadores e tétricos, como vi em Fátima e Lourdes, os mais famosos, mas também pode ser a basílica de Aparecida...  Na missa dos peregrinos, meio dia de domingo 
em Compostela, imensos castiçais balançam de um lado a outro da imensa platéia, queimando seu incenso que exala um perfume muito parecido com o da maconha. O próprio bispo de Compostela dirigia aquele ofício religioso, num traje completamente branco, com seus longos cabelos igualmente brancos, acompanhado de várias crianças pequenas no lugar dos tradicionais coroinhas.




Isso é Compostela. A exaltação do belo, jovem e alegre!





O estranho som da Turquia


O som da turquia não é apenas o espocar de bombas e fuzis. Há uma profusão de ritmos e cantares que não são exatamente árabes, contudo, diferentes de qualquer padrão ocidental. Além das belezas naturais e da cultura milenar, que formam um dos países mais belos do mundo, a música turca é sensacional, verdadeira jóia rara, muito conhecida e admirada no norte da Europe e Estados Unidos, embora ignorada no Brasil. Também, pudera, a Globo já colocou a música marroquina como tema de novela, mas, do som turco nunca se ocupou, ela, nem qualquer outro meio de comunicação brasileiro. Eu vou repassar para vocês um pequeno ensaio desse maravilhoso som, graças ao milagre da era moderna, a Internet e o site Youtube.

Que se trata de um país violento e agressivo, não há dúvida. O Brasil nunca teve imigrantes turcos, no entanto, chamamos assim a todos os libaneses, palestinos e sírios que fazem a alegria do comércio popular e antes eram os conhecidos mascates, que correram o país de ponta a ponta e muito contribuíram para nossa integração geográfica e cultural. Por que os chamamos de turcos? Por que seus países originários eram dominadom pelos turcos. O Império Otomano (turco) durou de 1300 a 1922 e conquistou o oriente médio, parte da África e parte da Europa. Na famosa ópera Nabuco, a canção Va Pensiero é um protesto contra a ocupação turca da Itália, que na peça é disfarçada como sendo um canto dos escravos hebreus na Babilônia. Há uma campanha entre os  italianos para que este seja o hino nacional, tamanha a importância daquele gesto de rebeldia do maestro Giuseppe Verdi. Haaa, mas que seria um dos mais belos hinos nacionais, haa, isso seria.


Soldados turcos são famosos pela crueldade nas várias guerras em que se envolveram, a ponto dos inimigos preferirem a morte do que caírem prisioneiros dos turcos.  Recentemente, as forças armadas turcas bombardearam uma comitiva que cruzava a fronteira do Iraque, matando dezenas de pessoas. Eram contrabandistas, mas, o primeiro ministro deu como explicação a seguinte lógica: "Peço desculpas, pois pensamos que eram curdos", ou seja, bandidos seriam perdoados, mas, para cidadãos turcos em busca de sua liberdade não há misericórdia. Assim como os curdos, os armênios também sofreram processos de genocídio, só interrompido depois de grandes pressões internacionais. Diz-se que que a Turquia é uma democracia e qualquer um pode praticar a religião que queira. Foi baseado nesse pressuposto que a diplomacia do presidente Lula se aliou a eles na defesa do Iran. Porém, todas as minorias étnicas na turquia são proibidas de falar a própria língua, além de expressar os valores da sua nacionalidade. Seria como proibir aos índios Guaranis o falar guarani, ou não permitir que os índios do Xingú façam sua dança. É um verdadeiro absurdo, mas, esta "norma" continua em vigor há muitos séculos, embora só reforce o sentimento de exclusão entre as minorias raciais e fomente a luta pela independência. Apesar de tanta violência, e talvez até em razão de tanta divisão étnica interna, a Turquia produz sons como estes:


Bulent Ortacgil, é considerado um dos melhores compositores e músicos da Turquia. Não é muito popular e vende pouco, mas está sempre entre os músicos de maior prestígio no país. Ultimamente dedica-se apenas à música instrumental e faz poucas apresentações por ano, vivendo retirado na sua aldeia natal.


Aynur Dogan é uma jovem compositora e cantora que veio ainda criança das montanhas do  Curdistão em 1992. Logo o seu primeiro álbum já foi proibido pela censura turca, argumentando tratar-se de propaganda do Partido dos Trabalhadores do Curdistão.


Brenna MacCrimmon é uma canadense que se apaixonou pela música turca, enquanto estudava na Universidade de Ontário. Depois de cantar numa banda de rock turca no Canadá, mandou-se de mala e cuia para Istanbul, onde mergulhou profundamente na cultura turca. Atua com sua própria banda, Orkestar Keyif, cujos músicos foram escolhidos a dedo por ela própria.


Trailler do filme "Crossing the Bridge" (Atravessando a Ponte) de 2005, grande sucesso crítico em Cannes e comercial no mundo todo. Tornou-se um musical referência de qualidade, coisa tão própria dos alemães, que já fizeram muita coisa boa nessa área. Não sei se passou no Brasil. Eu o assisti no canal Telecine Cult.