A devoção a Nossa Senhora é tão
antiga quanto o cristianismo e consta que foi São Lucas, o apóstolo, o primeiro
escultor de uma imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus, feita na cidade de
Antióquia, no antigo Oriente Próximo. Já na idade média surgiu em Madrid uma
igreja com a imagem da Mãe Maria com o Menino, e o povo passou a chamá-la Nossa
Senhora de Atocha, supostamente por que a palavra Antioquia tinha dado lugar a
um nome mais fácil de pronunciar: Atocha. Durante certo tempo da ocupação árabe
em Madrid, os soldados cristãos só podiam ser alimentados na prisão por seus
parentes, desde que a comida fosse ali entregue por garotinhos. Aqueles que não
tinham meninos em suas famílias estavam condenados à morte por inanição, por
isso suas famílias imploravam a Nossa Senhora de Atocha por um milagre. Consta
que cada um desses prisioneiros sem garotos na família, de tardezinha recebia a
visita de um menino trazendo sua cesta de comida. Depois, a população cristã
veio a constatar que o Menino na imagem da igreja de Atocha estava com os pés
gastos, dando conta da autoria do milagre, gerando assim a lenda que se
espalhou mais ainda depois da expulsão dos árabes. Consolidada Madrid como capital, em 1622
naufragou no mar do Caribe o galeão Nuestra Señora de Atocha, afundando para
sempre uma imensa fortuna em ouro e prata do Peru e do México, pérolas da
Venezuela e esmeraldas da Colômbia, tesouros que estavam sendo transportados à
Corte de Madrid. Apenas cinco das 265 pessoas a bordo sobreviveram e até hoje
aventureiros mergulham atrás dessas riquezas. Quis o destino que a estação
metro-ferroviária principal de Madrid ficasse justamente no distrito de Atocha.
A manhã do dia 11 de março de
2004 parecia anunciar mais um dia rotineiro de final de inverno na Grande
Madrid. Era uma quinta feira fria, porém iluminada pelo sol, os primeiros
botões de rosas vermelhas se preparavam para a primavera, que já ameaçava
ressurgir nos jardins das estações ao
longo da linha de Alcalá de Henares. A cada parada dos trens que se dirigiam
para a estação central, milhares de trabalhadores apressados se acomodavam nos
vagões lotados, prontos para iniciar mais um dia de trabalho duro. Gente de
todos os tipos e de todas as raças, incluindo imigrantes latino-americanos,
africanos e árabes, grande parte deles clandestinos na grande
capital espanhola. Pessoas que abandonaram seus países miseráveis e partiram em
busca do sonho de fazer na Europa sua independência financeira, até poderem
voltar para sua terra natal, em paz e com dinheiro suficiente para abrir algum
negócio e viver dignamente junto aos seus.
A viagem matutina diária começa
em Alcalá, cidade alta onde sempre sopra uma brisa fresca no verão e imagino
que muito gelada no inverno, com nevascas frequentes. Suas ruas são retas e
seus edifícios muito brancos, de uma claridade quase incômoda. É a cidade de
Cervantes, pai da literatura espanhola e criador do mito Don Quixote de la Mancha , o cavalheiro
andante que lutava contra os moinhos de vento da injustiça. Entre Alcalá e o centro de Madrid são uma
dúzia de pequenos municípios e pequenos distritos, alguns bonitinhos e bem arborizados, outros
verdadeiros pombais de cimento armado, porém todos com suas simpáticas e bem
ajardinadas estações de trem, que eu percorri numa viagem em junho de 2001 e jamais
esqueci.
Bem cedinho para o frio que ainda
fazia, milhares de trabalhadores haviam deixado suas casas no subúrbio e se
aproximavam da estação central de Atocha, num curto intervalo entre os quatro comboios
lotados que seriam atingidos pela tragédia daquela manhã. Quem poderia supor
que, em pleno tempo de paz e grande prosperidade da nação espanhola, um grupo
de 29 pessoas ensandecidas, absolutamente dominadas por um ódio inexplicável
contra a raça humana, pudesse ter colocado
treze bombas (que número cabalístico!) espalhadas por vários lugares
dentro dos comboios e da própria estação. Dez bombas explodiram num intervalo
de três minutos, por volta das 7:40 da manhã, causando a morte de 191 pessoas e
quase dois mil feridos. As outras três bombas estavam programadas para serem
detonadas algum tempo depois, suprema crueldade, quando os serviços de
emergência tivessem sido acionados e estivessem prestando os primeiros
socorros. Algo aconteceu e esses artefatos não explodiram, o que, segundo a
polícia, possibilitou a identificação dos primeiros suspeitos, pois as bombas estavam
colocadas dentro de suas mochilas, deixadas nos pontos planejados para a
detonação.
O governo espanhol, atônito,
imediatamente acusou o grupo separatista basco ETA, que recusou terminantemente
participação no crime, até que poucos dias depois o atentado foi assumido por
certa organização autodenominada Brigadas de Abu Hafs Al Masri. No decorrer das semanas seguintes de
investigações, vários suspeitos foram presos, outros se suicidaram quando
cercados pela polícia, e alguns outros foram acusados de estarem em rede com a tal Al Qaeda, tristemente famosa pelo 11 de
setembro de Nova Yorque, de cuja existência eu até chego a duvidar, por razões
que não vêm ao caso neste momento. Apenas um dos presos pela polícia teve participação efetiva na
colocação das bombas, já que todos os demais se suicidaram ou foram mortos pela
polícia. A pena que este acusado recebeu
é a máxima que se pode aplicar na justiça espanhola, que, assim como na
brasileira, é de trinta anos de prisão.
Independente dos processos e da
justiça boa ou ruim, a pergunta que me faço é
que razões poderiam levar um grupo de seres humanos e praticar gesto tão
medonho? E por que escolheram como alvo simples trabalhadores operários, a estrutura
mais frágil da pirâmide social? Tudo bem, este detalhe passa a ser irrelevante
diante da insanidade do ato. Teria sido
o ódio racial e religioso? Conheci de perto o confronto de civilizações que se
desenrola surdamente entre espanhóis cristãos e
muçulmanos, uns que se acham donos da nação por direito divino e outros
que dela não abrem mão, herdeiros dos
antigos povos que ocuparam parte da Espanha por oito séculos. Entretanto,
jamais suspeitaria um segundo desses espanhóis de pele morena, os mouros, seguidores da melhor tradição da cultura
islâmica, humanista e profundamente cordial no trato com os diferentes, assim
como os nossos “turcos”, que se tornaram tão brasileiros como nós mesmos. Não, os
árabes espanhóis jamais apoiariam tamanha barbárie. Tampouco pode ser culpa das
esquerdas revolucionárias, mesmo que nos velhos tempos o terrorismo tenha sido
aprovado como arma de luta, até por líderes do porte de Lenin, Trotski e tantos
outros, aliás, tanto à esquerda como à direita. Não creio que a luta política atual
na Espanha tenha espaço para esse tipo de terrorismo brutal, pois até grupos
como o ETA, quando usam violência, o fazem contra prédios públicos ou dos
grandes capitalistas, e raramente contra pessoas, ainda mais em se tratando de
quem se agrediu no episódio. Creio que
apesar de gritante, a pergunta não tem resposta. Não dá para explicar o absurdo, a não ser por
conta da loucura inerente ao gênero humano.
Madrid é uma cidade bonita,
limpa, organizada, alegre e progressista. É a capital do mundo hispânico, onde
a gente encontra representantes de todos os povos que o compõe, seja num
restaurante típico mexicano ou numa casa de tangos argentina. A democracia e a
tolerância estão por toda parte. É uma metrópole para onde se dirigem os
grandes talentos espanhóis, desde os melhores toureiros até as grandes divas
bailarinas de flamenco, que, depois de ralarem o tempo necessário até provarem
seu valor, encontram na capital a consagração merecida. Nada disso repara uma única vida perdida e o
sangue inocente que manchou Atocha para sempre.
Atocha, aqui vamos nós de novo!
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ResponderExcluirBelissimo texto...
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