Comecei a me interessar pela cultura e história argentinas quando cruzei pela primeira vez o país em direção ao Chile. Ao chegarmos na província de Mendoza, descobrimos que se realizava ali um festival de vinhos. Apreciadores do esporte de levantar copos, resolvemos ficar lá durante o final de semana. Realmente, aproveitamos muito bem as degustações, tanto que, no domingo de tardezinha, ninguém agüentava mais tomar vinho. Foi quando soubemos de um programa de televisão, que apresentava música folclórica ao vivo. Isso era no ano de 1993 e eu já tinha alguma noção cultural do país, principalmente através da literatura e das músicas de Mercedes Soza e Atahualpa Yupanqui, mas fui surpreendido pela beleza das Chacareras e pelo entusiasmo bailarino do povo simples que ocupava a platéia.
Foi então que me mandaram subir ao palco. Eu achei que tinha sido chamado por ser o mais bonito do grupo, mas, recentemente meu amigo me contou que ninguém queria atender ao convite da produção e sobrou pra mim, que falava um pouco de castelhano. Não me saí de todo mal, pois desci para o meu lugar debaixo de aplausos do povão. Isso me entusiasmou tanto, que virei fã do folclore argentino. Cheguei a dedicar uma semana de estudos na cidade de Cordoba, para pesquisar o principal estilo musical do país. Muito embora pareça esquisito, a música argentina mais apreciada no país não é o tango, que é uma manifestação regional típica do Rio de La Plata, embora tenha atingido ressonância mundial. A principal temática folclórica da música argentina é a Chacarera. Aqui, convém observar mais um daqueles enganos universais! De fato é conhecida, tocada e dançada em todo o imenso país que gosta de competir conosco no futebol, no entanto, muito antes de existir a Argentina, a Chacarera já fazia grande sucesso nas fazendas da Bolívia, tanto na secura do altiplano (Andes) quanto no Chaco da fronteira paraguaia.
A Chacarera toca-se com violão,
violino, sanfona e bumbo. Alguns grupos usam também o piano e palmas para
marcar o ritmo forte da dança. É uma das preferidas entre os estudantes e
admiradores de música popular da América Latina. Eu mesmo
não acreditei quando um professor de folclore argentino me explicou detalhadamente as origens do ritmo famoso, pois, como todo o mundo, eu associava a música boliviana com aquelas
canções melodiosas e tristes, tocadas com flauta queña e charango, tipo
“El Condor Pasa”, não tem? A Chacarera, ao contrário é ágil e alegre,
apropriada para reuniões festivas. Daí talvez venha o engano histórico sobre suas origens,
pois a elite boliviana a rejeitava, devido justamente a este caráter rural e
popular. Além disso, a Bolívia pertencia ao vice reinado do Peru, com sede em
Lima, muito distante dos pagos onde hoje se pratica a dança em questão.
Chacarera
boliviana? Nunca ouse dizer isso a um
argentino típico, pois a reação do indivíduo (ou grupo) pode ser inesperada. Há certas verdades sobre
suas identidades culturais que os argentinos simplesmente não aceitam. Entendi
isso quando descobri que o país foi também grande escravocrata. Li relatos dos próprios padres
Jesuitas, descrevendo que se utilizavam largamente da mão de obra escrava negra
na cidade sede da Ordem, em Alta Gracia, cerca da capital cordobeza. Na virada do ano 1800, 75%
da população de Buenos Aires era negra. Onde foram parar estes negros? A cada
vez que eu queria discutir isso, os argentinos se irritavam ou
mudavam de assunto. O mesmo acontece
quando você os lembra que Carlos Gardel era uruguaio e seu principal parceiro,
Alfredo Le Pena, era brasileiro. Nos chamam de burros e equivocados, contra todas as evidências históricas.
Fora disso, são excelente companhia, como
pessoalmente comprovei na convivência com vários hermanos . Uma característica muito boa, por exemplo, é o respeito
que os mais novos nutrem em relação aos velhos. Lá não existe aquela coisa horrorosa de nos chamarem de tiozinhos.
Isso não quer dizer que sejam caretas, ao contrário, têm muito bom humor.
Comprovei isso certa vez quando, jantando com dois casais muitos jovens,
entabulamos muito proveitosa conversa sobre os relacionamentos, cujo desfecho foi
a conclusão a que chegaram de que o importante no casamento é o que eu entendi
como “diário”. Minha cabeça ficou perdida na situação, já que a palavra também
é sinônimo para jornal. Então me manifestei:
“Pera lá, esclareçam isso, por favor. Como pode um diário ser importante para o casamento?”. Um dos jovens me sacaneou
“El diário, Lae, el sexo diário”. Ante minha expressão atônita e abobalhada, sua mulher contestou “si, pero, no
tan diário, heim!”. Dali à pouco,
entre gargalhadas, compreendi o que tinham dito sobre o sucesso do
relacionamento: precisa de muito
“diálogo”.
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