Em 1970 a
gravadora Odeon lançou um disco chamado Som Imaginário. O cantor era Milton
Nascimento e a banda que lhe dava suporte foi uma das melhores já formadas no
país. Durou tres anos com esse nome,
período no qual passaram por sua formação músicos como Naná Vasconcelos, Wagner
Tiso, Robertinho Silva, Zé Rodrix, Tavito, Fredera, Nivaldo Ornellas, Lô
Borges, Cláudio e Flávio Venturini, Beto Guedes, Sá, Guarabira e Toninho Horta.
Músicos que fizeram longas e bem sucedidas carreiras internacionais, como
Toninho Horta e Naná Vasconcelos, ou que ficaram em suas pequenas cidades do
interior de Minas Gerais, como o guitarrista Fredera, em Alfenas, ou Tavito,
que voltou para suas raízes sertanejas na tranquila Curral del Rey. Em torno do
grupo, circulavam ainda certos compositores que mudariam a cara da música
brasileira, como Fernando Brandt, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. Nem todos
eram mineiros, mas o que os conectava era a verdadeira veneração por um sujeito
adotado por Minas, Milton Nascimento,
que havia composto com os irmãos Márcio e Lô Borges duas canções chamadas Clube
da Esquina.
O som que esse pessoal fazia vinha do rock progressivo inglês,
misturado com barulhos dos carros de bois de Minas Gerais. Era fundo musical de
Atahualpa Yupánki para Peter Gabriel, Pena Branca&Chavantinho com arranjos
de Roger Waters, temperados com o veneno glamouroso de uma das vozes mais belas
da humanidade, a do Milton com trinta anos de idade, ainda não corroída pelo
álcool. As canções eram prolixas, complicadas e herméticas, usando a voz humana
como mais um instrumento musical. Uma
das primeiras aparições oficiais do grupo Som Imaginário, como banda
independente, foi na TV. O curioso é que certas peças não eram censuradas, em
pleno regime da censura prévia, talvez por que os censores não as entendessem.
Se a Televisão brasileira soubesse que "Feira Moderna" é uma ácida
crítica a ela mesma, talvez a canção não tivesse feito carreira tão longa. Aquele
novo som provocava espasmos de satisfação, de um lado, mas tinha o repúdio dos
músicos bem comportados da bossa nova, por exemplo.
Em 1973 Milton Nascimento resolveu perder a
timidez. Organizou um grande concerto, com o qual correria o país e faria sua
ascenção internacional. A estréia de "Milagre dos Peixes" deu-se no
Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, mas, ao longo de dois anos ele tocou
tanto em grandes teatros municipais, em festivais universitários pelo interior do país, ao ar livre, com a
orquestra e o coro pendurados em armações de madeiras improvisadas. O desgaste
foi grande, muitos músicos desistiam no meio das viagens, em cujos intervalos o
grupo ensaiava até à perfeição numa grande casa isolada na praia de
Piratininga, Niterói. Aqui já encontramos um Milton dissonante no meio de um bem
afinado coro de crianças e uma orquestra sinfônica sobre a percussão de Naná
Vasconcelos. O som imaginário ganhava elogios da crítica, mas perdia o apoio
dos bichos grilos marginais, que migraram para outras bandas derivadas, tais
como a semi-country 14 Bis ou as psicodélicas Casa de Máquinas e O Terço. Enquanto isso, Milton levava sua música cada vez mais longe, assombrando
o mundo com sua sopa latinoamerica-africana, que dava bom caldo.
Uma das jóias que o acompanharia nos mais
importantes palcos, ao lado dos grandes mestres do jazz moderno, foi a canção
"Nada Será como Antes", que trata do sufoco ao qual foi submetida a
população pensante brasileira durante a fase brava da ditadura. Tudo muito
cifrado, afim de passar pela censura, foi colocada no álbum "Milagre dos
Peixes ao Vivo", de 1974, gravado no Teatro Municipal de São Paulo, embora
já estivesse no disco de 1972, o "Clube da Esquina". Nesta canção, um
brasileiro se encontra com alguém,
"num domingo qualquer, qualquer hora, ventania em qualquer direção" e
conjecturam sobre a vida que levavam "sei
que nada será como antes, amanhã". Não
se sabe para onde este personagem está indo ou de onde vem, naquele cenário onde pessoas
desaparecem a toda hora, aparentemente trata-se de alguém clandestino, "Que notícias me dão dos amigos?".
No final, entra o solo incidental de "See you in
september", grande sucesso daqueles tempos, enquanto o personagem encerra
a entrevista com o suposto contato, apostando em dias melhores "resistindo, na boca da noite
um gosto de sol". Virou um
clássico do cancioneiro político libertário anti-ditaduras do mundo inteiro.
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