quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Vitor Jara, herói chileno.


Em 11 de setembo de 1973, com um golpe de estado as forças armadas tomavam o poder no Chile. À frente do movimento que bombardeou o Palácio de La Moneda e matou o presidente eleito Salvador Allende, estava o ministro da guerra, general de exército Augusto Pinochet, traindo o próprio juramento de obedecer à constituição. Posteriormente ficou provado que a CIA norte americana deu suporte estratégico aos golpistas, o que já havia feito no Brasil e faria na Argentina, em seguida.  O Chile imediatamente converteu-se num campo de concentração facista e levou um banho de sangue.

Allende cometeu algum crime? Não. Apenas tentou, ainda que muito timidamente, trazer alguma justiça social a este que é um dos estados mais desiguais do mundo ocidental. Uma nação indígena comandada por brancos, espanhóis e imigrantes, os donos de tudo, enquanto a população geral sobrevivia nas trevas da miséria e ignorância, lavrando as terras com as próprias mãos ou morrendo esmagada nas profundezas das minas. Por séculos o Chile esteve isolado pela imensidão do Pacífico e pelas escarpas inacessíveis da Cordilheira, entregue à sua própria sorte. No início os espanhóis detinham o segredo da passagem do Estreito de Magalhães, e o utilizavam para saquear o ouro das Américas Central e do Sul, únicos navegadores nas costas do Pacífico, paraíso que durou pouco.  Menos de cem anos depois, a rainha da Inglaterra montou um time de piratas para acabar com a festa, dando o comando da expedição ao pirata mor Francis Drake, nomeado Sir,  devido a importância estratégica em descobrir como os espanhóis faziam para trazer tanta riqueza das Américas. Tres anos depois a missão estava concluída e os piratas ingleses, sempre a serviço da rainha, já dividiam com os espanhóis a costa chilena. Ao mesmo canal descoberto pelo português Magalhães, deram o nome de Drake.  Os chilenos continuaram pobres e isolados.  Ao longo do século XX a cena foi ocupada pelos partidos conservadores, até que Allende montou sua aliança e ganhou as eleições em 1971.

Estava em jogo alguma revolução comunista?  Não.  Tratava-se de um governo apoiado por uma frente ampla e democrática, reformista, porém de base totalmente liberal e capitalista, embora  apoiado também pelos comunistas. A única força popular importante que estava na oposição eram os democrata-cristãos, do ex presidente Eduardo Frei, o pai, não o que acaba de perder a eleição para o dono da Lan Chile e minas de cobre.   Pois estes elegantes cristãos e democratas fizeram olhos de cegos, fala de mudos e ouvidos de surdos, diante do massacre promovido no país.  Ao contrário do golpe da ditadura brasileira, que foi se implementando aos poucos, no Chile a guerra suja já se instalou no primeiro dia. Qualquer pessoa que tivesse o mínimo de ligação com algo que cheirasse a esquerdismo, era imediatamente suspeita de comunismo, presa e torturada, quase sempre por puro instinto sanguinário e violento das novas autoridades. Consta que o próprio Pinochet gostava de andar pelas madrugadas a visitar as masmorras de tortura, inclusive no Estadio de Chile, transformado em prisão.  Poeta detentor do Prêmio Nobel,  Pablo Neruda morreu de tristeza alguns dias depois do golpe. Pois os agentes da repressão foram ao velório e, disfarçados de jornalistas, filmavam as pessoas presentes. Uma a uma foram identificadas e presas, pelo fato de estarem ali, o que já prenunciava certa identidade política com o poeta socialista e com o governo anterior.

No mesmo dia do golpe, invadiram a Universidad de Chile e prenderam todo mundo, inclusive o professor Victor Jara, que também era teatrólogo, compositor e cantor. Recém completara 41 anos de idade e fazia enorme sucesso popular com o grupo modernista semi-folclórico Quilapayún. Suas canções eram francamente politizadas, procuravam a conscientização do povo, mas não pregavam a luta armada. Sua visão do processo era mais sofisticada e de longo prazo.  Do ponto de vista militar, eram inofensivas. Vivia de bem com seus contemporâneos da classe média, compondo também lindas canções de amor, e não apenas protestos políticos. No romance A Casa dos Espíritos, a escritora Isabel Allende (prima em segundo grau do presidente assassinado) descreve um dos seus personagens como um cantor popular que anda pelo interior, cantando para o povo simples, onde interpreta personagens engraçados, como se fossem galos e galinhas no terreiro de casa, em situações de confronto e luta pelo poder no galinheiro. É um personagem ingênuo e pacífico, mas, mesmo assim, é preso pelo potencial perigoso de suas idéias. Esse foi Victor Jara, torturado e morto no Estádio de Chile. Sintomaticamente, teve as mãos esmagadas, como que a lembrar a outros potenciais delinqüentes que o som da guitarra também pode ser um perigo para a segurança da nação. Seu corpo foi jogado numa favela de Santiago. 

Hoje, Victor Jara é um personagem universal da luta pela liberdade. Quando um grupo de estudantes açorianos na Universidade de Coimbra começou a cantar canções de intervenção política, em apoio à Revolução dos Cravos, não encontrou material de origem portuguesa suficiente para tal. Os brasileiros também penavam sob brutal censura. Então usavam canções chilenas e se deram o nome de Brigada Victor Jara. Com o tempo, passaram a cantar folclore português, o que fazem até hoje, mas mantiveram o nome. Bem que fizeram, pois não é o nome de qualquer um. Trata-se de um herói popular, pequeno índio mapuche, mártir da luta pelo direito de viver em paz.

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