Em 1960
instalava-se definitivamente o governo comunista em Cuba, após vencer
militarmente o exército regular apoiado pelos Estados Unidos. Depois de algum
tempo de transição para acomodar os interesses e forças heterogêneas que
ganharam a guerra em 1959, o comandante Fidel Castro tratou de organizar um
governo formal, que desse ao país aquilo que a revolução havia prometido. Foi
nessa época que Che Guevara, o maior ídolo da população, era nomeado
ministro da economia. Diz-se que sua nomeação foi fruto de um equívoco, como
logo restou provado, diante do fracasso de sua gestão. Mas, o equívoco de que
fala a tradição popular é
outro. Consta que Fidel dirigia a plenária de montagem do governo, onde se
lançavam candidatos e estes eram votados pelos delegados escolhidos em suas
respectivas bases. Quando chegou a hora de nomear o ministro da economia, Fidel
teria perguntado, "Há algum economista na
plenária?". Guevara, como era meio
surdo, além de asmático, entendeu que buscavam por um “comunista” e respondeu
imediatamente “Yo, señor, yo lo soy”. Ora, sendo o Che uma
pessoa tão querida e famosa, e, além disso, preparado tecnicamente para o
cargo, o próprio Castro tratou de indicá-lo por aclamação. Posteriormente nosso
ministro "economista" mandaria todo mundo para o campo a plantar
cana, produzindo uma super safra que encontrou o mercado mundial abarrotado de
açúcar. Foi o começo de seu fim, pois, demitido do ministério, assumiu a tarefa
de levar a revolução a outros povos, desempenhando uma espécie de ministério de
exportação ideológica. Foi nesse papel que esteve no Brasil e foi condecorado
pelo então presidente Jânio Quadros. Depois iria seguir sua estratégia de criar
“mil vietnans”, até ser morto na Bolívia.
A
presença de Guevara, o ativismo sindical da CGT, a renúncia de Jânio e as
reformas de base do novo presidente Jango Goulart assustavam a elite
brasileira, que passara a freqüentar os quartéis para conversas reservadas com
os generais comandantes. Já havia sido tentado um golpe militar em 1961,
mas batera de frente com o governador do Rio Grande do Sul, que organizou uma
rede radiofônica contra a ilegalidade e se aliou ao comandante local,
prometendo resistência militar e rachando as forças armadas.
Em finais
de março de 1964, não teve jeito e veio o golpe. Reagindo a uma revolta de
marinheiros e àquilo que os comandantes militares mais temem, a insubordinação,
um general mineiro se mandou com suas tropas para o Rio de Janeiro, afim de
cercar o palácio Guanabara, onde costumava ficar o presidente da república,
apesar da capital federal já ser em Brasília. No início, as lideranças
civis conservadoras apoiaram integralmente a ação que tomou o poder e mandou o
presidente João Goulart para o exílio. Com o passar dos meses, entretanto,
percebeu-se que os generais gostaram do brinquedo. Castelo Branco já falava em
estender o período de exceção e cancelou as eleições presidenciais de 1965.
Quando se deram conta, todos os líderes civis
estavam jogados à sarjeta, ignorados pelo novo poder. Então organizaram a
Frente Ampla, que juntava no mesmo palanque lideranças antagônicas como as do
PTB, UDN, PSD e vários caciques regionais, e deram um banho eleitoral nos
candidatos dos militares aos governos dos estados em 1966. Pergunta se os militares gostaram
disso. Em 1967 a ditadura
se escancarou e passou o comando ao general Costa e Silva, traindo
definitivamente seus aliados civis como Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Nei
Braga, Magalhães Pinto, Jucelino Kubitcheck e tantos outros. Em seguida, Costa
e Silva promulgou uma nova constituição e uma lei de segurança nacional que
botou todo mundo em barbas de molho.
Estávamos entrando nos anos do “milagre brasileiro”, combinando
repressão das liberdades com altas taxas de crescimento econômico, concentrado
em empreendimentos de grande porte. Delfin Neto dizia abertamente: “É preciso
fazer o bolo crescer, para depois distribuí-lo”. A minha fatia pessoal veio na
forma de ascensão social. Deixei a roça no final dos anos 50 e os 70 me
encontraram no exército brasileiro, de onde saí para ser funcionário de
companhia estatal. Meu pai transformou-se de lavrador em motorista de caminhão.
Graças às transformações sociais feitas pela ditadura, não foi pouco o
progresso da família Duarte, mas, ingrato que sou, entrei na onda das passeatas
estudantis.
OS ANOS DE
CHUMBO
O ano de
1968 foi uma festa, à qual alguns analistas mais criteriosos chamam de
“porraloquice geral”. Entre variadas tolices, uma foi a do deputado sangue azul carioca que
deu a entender que as esposas dos milicos não lhes deviam conceder favores
sexuais na semana da pátria. Depois ele mesmo disse ter sido uma idiotice, uma
frase infeliz no meio de um discurso no pinga fogo do fim de expediente, algo
que normalmente sequer seria transcrito aos arquivos da casa. Mas, todos os
olhos do regime estavam voltados para a guerra fria e a “subversão comunista”
que se alastrava a partir da revolução cubana, assim que o tal discurso infeliz
virou questão de honra. Os comandantes militares queriam por que queriam
processar o deputado. Para isso, precisavam de licença da Câmara Federal, que
lhes negou o pedido na seção de 12 de dezembro. Pois bem, no dia 13 o general
Costa e Silva editou o Ato Institucional número 5, fechando o congresso. A
partir daí o caldo engrossou e entramos nos anos de chumbo.
Nessa
época surgiram os grandes ídolos da música popular brasileira, que ainda hoje
são as nossas maiores estrelas. A Tropicália de Caetano, Gil, Gal e Betânia, o
gênio inovador de Tom Zé, Hermeto Pascoal e Sivuca, o lirismo de Chico Buarque,
a alegria da Jovem Guarda sob a liderança de Roberto e Erasmo Carlos, o
som imaginário de Milton Nascimento e o Clube da Esquina, todos capitaneados
pelos já famosos Tom Jobin e Vinícius de Morais, que vinham da Bossa Nova
do final dos anos cinquenta. Além de importantes movimentos regionais espalhados pelo
país. Sobre todos eles brilhava uma estrela única: seu nome era Geraldo Vandré.
A juventude de hoje não tem a menor noção da importância desse personagem
em nossa história musical.
Entre
1964 e 1968 ninguém foi capaz de ameaçar sua liderança popular inconteste. Na
luta democrática contra o regime militar não houve canções de protesto que
chegasse aos pés das que fez Geraldo Vandré. No plano internacional, a
música de protesto também reinava absoluta, contestando o sistema de valores
então vigente. A juventude norte americana que se mobilizava contra a Guerra do
Vietnan tinha em Bob Dylan o grande poeta das longas baladas anti burguesas,
mas ele próprio rejeitava o papel de protagonista da história. Queria ser
apenas poeta e músico, enquanto no Brasil, Vandré assumia o papel de condutor
da luta política cotidiana e compunha a canção “Caminhando”, onde as centenas
de milhares de pessoas em passeatas pelas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro
pediam a volta da democracia, entoando os versos que diziam “Vem, vamos
embora / que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / não espera acontecer.”
Mais direto que isso seria impossível. Por isso a primeira coisa que os
militares fizeram quando publicaram o AI-5 foi proibir a execução desta e
outras canções de Vandré. E iniciaram a caçada implacável. Caetano e Gil foram
presos e mandados para o exílio em Londres. Chico e Vinícius fugiram para a
Itália. Vandré saiu clandestinamente para o Chile, de onde tomou o caminho da
França. O Brasil mergulhava no terror. O sistema de segurança nacional apertava
o cerco, fechava as organizações políticas e as universidades, enquanto
organizava os núcleos de combate para-militar ao que chamavam de “subversão
comunista”. Proibida a atividade política normal, o objetivo estratégico do
regime era empurrar toda oposição não consentida para a luta armada. Os
partidos comunistas tradicionais, PCB e PCdoB, se fracionaram em várias
tendências que partiram para o confronto armado, algumas procurando atuar nas
zonas rurais do interior, mas, a maioria buscando os grandes centros, onde
passaram a praticar ações de terrorismo explícito. Dessa época é o assalto
que a turma de Dilma Rousseff praticou ao cofre de Ademar "rouba mas
faz" de Barros, onde o grande figuraço paulista guardava a grana da
corrupção. Posteriormente, este dinheiro financiaria várias ações armadas
praticadas por grupos revolucionários clandestinos. Foram presas fáceis dos
órgãos profissionais de repressão, treinados pela CIA norte
americana.
O QUE FOI FEITO DE
GERALDO VANDRÉ?
Quando lhe
fui apresentado num restaurante em Floripa, eu não sabia bem
como me comportar. Afinal, ali estava um de meus maiores ídolos da juventude,
alguém que permaneceu no meu inconsciente por décadas, cada vez mais iluminado
pelo brilho da utopia perdida. Não era fácil acreditar que aquele senhor
de aparência doentia havia sido o vigoroso e bonito cantor com voz potente de
aboio nordestino, que aparece ainda hoje nos vídeos sobre os festivais de
música na década de sessenta. Havia tanto o que perguntar e ouvir, mas eu não
sabia como começar. Então, falei da notícia que circulara há algum tempo,
dando conta de que ele havia ganho um processo de reparação, sendo restituído a
seu antigo emprego no Ministério da Agricultura, já na condição de aposentado.
Quando comecei a tocar no tema, com todo cuidado, meu amigo Adolfo iniciou uma
sequência de chutes por baixo da mesa e quando olhei para ele, seus olhos
gritavam “pare, não toque nesse assunto!” e eu parei. Geraldo Vandré fez que
não era com ele, e talvez não fosse mesmo. A partir dali passei a
acompanhar a conversa insossa e nonsense dos dois e a única coisa que me lembro
de interessante, foi que Geraldo chamou o garçom e passou a examinar um a um os
doces árabes numa cesta, segurando-os nas mãos, para desespero do garçom, que
lhe chamou a atenção: “Senhor, só pegue aqueles que vai comer”. Vandré se
encheu de vergonha e comprou toda a cesta, pondo-se ele e Adolfo a rirem como
se fossem crianças. E quem disse que não eram?
Apareceu estes dias na TV Globo. Hoje ele tem 75 anos de idade, mas
aparenta mais de 90. O único show que realizou
no Brasil desde 1968 foi numa festa em homenagem à Força Aérea Brasileira, em
1995, acompanhado por um coral de cadetes. É sabido que quando voltou ao
Brasil, no final de 1973, desembarcou em Brasília e foi imediatamente conduzido
às instalações da aeronáutica. Ele garante que nunca foi torturado. Essa
afirmação seria perfeitamente confiável se ele não entrasse em contradição com
sua história, ao declarar também que “nunca fez música de protesto”, que “nunca
foi anti-militarista”, que
“nunca pretendeu ser líder de nada” e que “se a canção Caminhando virou hino
anti-ditadura”, não foi por sua vontade. Declarações
que deixam sem muita credibilidade a saúde mental de quem a faz, um autor que
tinha orgulho da qualidade de seu trabalho e do impacto que causava nas massas,
alguém capaz de afirmar que trazia “certezas
e esperanças para trocar por dores e tristezas, que bem sei, um dia ainda vão
findar, um dia que vem vindo e que eu vivo pra esperar, na avenida girando, estandarte
nas mãos pra anunciar”. Ou que ameaçava gravemente “Vim de longe e vou
mais longe, quem tem fé vai me esperar, escrevendo numa conta pra juntos a
gente cobrar”.
Entre
outras asneiras, ele afirma hoje que nunca se interessou pelo meio artístico,
que quase não conhecia ninguém, blá, blá, blá ... Ora, ele lançou vários
monstros sagrados da música brasileira, como Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte,
Airto Moreira e Geraldo Azevedo, entre outros. Teve contatos com todos os
movimentos, dos roqueiros à bossa nova, do samba de morro à tropicália. Hermeto
Pascoal nos contou, em show na Lagoa da Conceição, que Vandré ficou puto ao ver
o então mais famoso sambista brasileiro, Jair Rodrigues, iniciar com um
sorriso bobo-alegre a apresentação de Disparada no festival da Record de
1966, quando a letra altamente politizada alertava “Prepare seu coração para
as coisas que eu vou contar” e pedia alguém mais centrado na interpretação.
Jair Rodrigues havia sido escalado pelos interesses comerciais da gravadora e
da TV. No intervalo, ele chamou Jair num canto e passou-lhe um tal sabão que, a
partir daí, Jair se comportava com um legítimo vaqueiro revolucionário. Imagine
se alguém com tamanha consciência de seu papel dramático pode afirmar que nada
foi intencional.
OS ANOS DESESPERADOS
Durante
seus cinco anos de exílio Geraldo Vandré vagou pela Europa, até que encontrou o
músico pernambucano que iria criar o grupo Quinteto Violado. Quando Marcelo
Mello viu as novas canções de Vandré, não descansou enquanto não o fez
gravá-las todas, gerando o álbum que se denominou “Das Terras de Benvirá”,
feito inteiramente nas igrejas francesas, só com a voz de Vandré e o violão de
Marcelo, da mesma forma que Caetano Veloso mandava de Londres o LP “Transa”, só
com sua voz e o violão de Jards Macalé, pois não havia dinheiro nem recursos de
produção profissional para aqueles rebeldes perdidos no mundo. Cada exilado ou
viajante que desembarcava no Brasil, trazia debaixo do braço uma fita cassette
do futuro álbum, que aos poucos foi se espalhando clandestinamente, até virar
sucesso absoluto em todas as casas e encontros de esquerdistas, nos centros
acadêmicos e nas últimas organizações que sobraram com alguma autonomia, como a
Pastoral Operária. Era, antes de tudo, um canto de rendição. Um grito de dor
diante da derrota da luta armada, e que buscava construir esperanças de novos
caminhos para o futuro. Lembro-me das audições que fazíamos em Curitiba, todos
em silêncio a acompanhar no gravador a voz lancinante de Vandré “... e perdoa
amiga, que eu não vá correndo hoje te abraçar. / Nem cortar caminho, nessa
caminhada que é pra te encontrar. / Que eu guarde a esperança, que vem vindo o
dia de poder voltar. / Sem ter
na chegada, que morrer amada, ou de amor matar”. O irmão de um militante do
PCdoB, amigo nosso, ouviu este disco até meter uma bala na cabeça. Eram os
anos desesperados. No começo da década 70 havia três saídas: o exílio, a
guerrilha ou a alienação. Com o passar do tempo, sobrou apenas a última.
Numa
entrevista antiga para a TV Cultura, o poeta e músico Renato Teixeira fala de
seus grandes inspiradores e, referindo-se a Vandré, afirma "Esse era
valente mesmo e soltava um fogo perigoso que se alastrava por todo lado".
Agora, o programa da Globo News começa com uma pergunta: “O que aconteceu com Geraldo Vandré?”
e este responde com certo sorriso bobo: “Ficou fora dos acontecimentos”.
Portanto, nem Vandré sabe o que aconteceu com ele. Dali para frente o programa
é um rosário de lugares comuns, nenhuma informação nova, a não ser as
incongruentes homenagens à FAB e as confusões históricas do entrevistado.
Muitos dizem que ele foi lobotomizado. Outros fantasiam que foi muito torturado
e sofre da Síndrome de Estocolmo, aquela doença mostrada no filme O Porteiro da
Noite, que faz uma linda judia voltar para seu torturador nazista, mesmo tendo
um marido maravilhoso na América.
Além de
outro concerto em homenagem aos militares da aeronáutica, diz Geraldo Vandré
que pretende gravar no exterior as mais de 30 composições inéditas,
surpreendentemente escritas em espanhol. Nem tudo, entretanto, é delírio em
suas lembranças: “Minha
canção "Caminhando" foi proibida em 1968 e foi a causa de eu ir embora do Brasil.
Mas, até hoje ela rende impostos e movimento econômico, pois é regravada
constantemente e está sempre nas paradas de sucesso”, e, de
fato, a canção está novamente fazendo sucesso na voz de Zé Ramalho, mais de
quarenta anos depois. A "Disparada" nunca saiu do repertório de shows do Jair Rodrigues, sucesso
garantido. Mas, de novo volta ao delírio quando afirma “Por
isso não aceito a anistia, pois ela só se aplica a alguém que tenha cometido
crime”. Ora, Vandré,
dos anistiados brasileiros da ditadura, 99% cometeram o único crime que você também
cometeu no passado: o de opinião.
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