sábado, 4 de fevereiro de 2012

Pé Vermeio








Desconfio até que ele nunca usou pólvora, de fato, pois era incapaz de matar um passarinho. Não sei dizer nada sobre sua origem, a não ser que sua ocupação era a de lavrador, como todos os demais.  Só tomei conhecimento da presença de João Porva em Pindura-Saia quando ele se casou com a tia Luzia, a mais moça das irmãs de minha avó. Juntando com tia Bruzina, a do meio, formavam o trio de filhas do major Infante Vieira, meu bisavô, que veio para o sertão do Rio Paranapanema lá pela virada nos 1900, alguns anos antes da linha de ferro. Fixou-se do lado paranaense e com o passar dos anos adquiriu vários lotes de terras devolutas, com o compromisso de colonizá-las. Seu posto de major era honorário e não lhe rendia soldo algum, de modo que tinha que amassar o barro e produzir da terra, se quisesse alguma renda. Naturalmente lhe preocupava o destino das filhas e, precavido, lhes reservou uma área de boas terras férteis e vermelhas, na beira do Rio Cinzas, esperando que seus futuros maridos a cultivassem e desenvolvessem. Não teve sorte, pois os três se revelaram grandes cachaceiros e mulherengos, com pouca afinidade ao trabalho da roça. O primeiro deles era meu avô, que se casou com a mais velha, Antonia, com quem teve uma vida atribulada até dilapidar por completo o patrimônio deixado pelo Infante Vieira. Foi quando finalmente perdeu toda a autoridade de chefe da casa, passando a viver na dependência de suas filhas mais novas. Morreu precocemente aos setenta e seis anos de idade, enquanto a vó Antonia chegou aos noventa e seis, quando se foi, atormentada por que caiu numa escada e precisava da cadeira de rodas, com a qual não se relacionava muito bem, cabocla trabalhadeira que sempre foi .  

O marido de tia Bruzina, além dos defeitos comuns ao trio também tinha a mão torta. Era, todavia, o mais esforçado e o único que aumentou o patrimônio original. Habilidoso nos negócios, foi seguindo a fronteira agrícola até instalar-se com sua numerosa prole nas cercanias de Foz do Iguassu, onde ficou rico, não se sabe bem como. Os despeitados parentes pobres insinuam que de plantar feijão é que não foi. Já na velhice, teve que mudar-se de novo, agora para Rondônia, pois seu filho mais velho assassinara um vizinho numa festa no povoado de Santa Terezinha de Itaipú e todos resolveram abandonar a área.  Até nisso deu sorte, pois, de qualquer modo, suas terras seriam desapropriadas para a construção da grande represa.  E a ditadura não costumava avaliar bem o que desapropriava, inclusive certas vidas privadas. Em Rondônia o marido de Tia Bruzina aumentou ainda mais o patrimônio familiar.  

Das tias avós,  Luzia era minha preferida. Ela tinha uma personalidade alegre e generosa. Suas risadas ecoavam pela casa, de forma aberta e franca, divertindo-se com as piadas que ela própria contava.   Lembro-me bem que ela fornecia o leite de vaca para nossa casa, já que era proprietária dos únicos animais desta espécie existentes naquela comunidade rural. Quando se casou, ela já estava acima da idade normal das moças casadoiras, e bem maltratada pela vida, embora eu acredite que ainda não tivesse passado dos trinta, tantas eram as pressões e preconceitos contra as mulheres naquela dura vida rural.  Os homens trabalhavam o dia inteiro na roça e quando chegavam em casa, lá pelas cinco da tarde, se punham no direito de descansar, tomar banho no rio ou dar um pulo na venda, para ouvir alguma viola  e encher os cornos de cachaça. Já as mulheres, acordavam de madrugada a acompanhavam o marido nas primeiras atividades do dia e depois, quando eles saiam para as plantações, elas se punham a cuidar de hortas, chiqueiros e galinheiros. Em seguida preparavam o almoço, que levavam aos maridos em marmitas quentinhas, junto com a garrafa de café e o pão do lanche da tarde.  Quando voltavam da longa caminhada ao sol do meio dia,  a vontade de tirar uma soneca era grande, mas, com tanta roupa pra lavar? Descem para o rio com a cabeça equilibrando a trouxa, esforçadas esposas como tia Luzia, que fazia questão de estender no varal da casa os lençóis e roupas  mais  branquinhas e brilhantes de todo o sertão do Pindura-Saia.  E dê-lhe casa pra limpar e louça pra lavar, até que chega a hora de preparar a janta com o que sobrou do almoço, quase sempre transformado em sopa, com o auxílio de cremosos aipins e batatas. Depois do jantar, o silêncio do sertão e o brilho das estrelas convidavam as jovens campeiras para o amor, esperança logo apagada com os roncos dos maridos que se deitam ao lado, quase sempre cheirando cachaça.

Ahh, mas, não o tio João Porva !  Este não negava fogo e estava distante da mediocridade dos demais caboclos. Tratava tia Luzia com extrema gentileza, era “meu benzinho” daqui, “minha querida” dali, “vê um copo de café, meu anjo” ou “olha esta goiaba que eu guardei pra você, meu amor” e tia Luzia se desmanchava em “ai, meu nego!” que não acabava mais. Ele era um tipo alto e moreno, cabelos lisos, olhos negros como a graúna e bigodões no mesmo tom.  Malandro, plantava pouco para não ter muito trabalho. Preferia criar gado, atividade que podia dividir com tia Luzia e alguns boiadeiros, os mesmos que levavam os animais ao abatedouro, onde se fechava o ciclo produtivo. De vez em quando lá ia João Porva para a cidade, acertar as contas com o frigorífico e receber o produto das entregas. Bem barbeado, cabelos penteados com brilhantina americana, cravo nos bolsos da camisa e uma raminha de canela detrás da orelha. Dava gosto vê-lo lustrar as botas, enquanto tia Luzia se punha nervosa, ciscava pra todo lado, mas não dizia uma palavra que manifestasse qualquer contrariedade. Nunca pediu para ir junto.  Quando alguma dupla sertaneja estava se apresentando em algum circo pela região, João Porva fazia questão de levar a tia Luzia e apresentá-la pessoalmente aos músicos. Algumas vezes conseguiu trazê-los para o Pindura-Saia, onde cantavam nas vendas e se hospedavam no sítio do casal. Em épocas de vacas gordas, rolava um churrasco com cerveja, para o qual eram convidados todos os vizinhos.  João Porva sabia viver bem.

Passados o que para mim pareceram muitos anos, talvez uns quatro ou cinco, João Porva e tia Luzia apareceram em nosso exílio maringaense. Meu pai estava viajando pelo Mato Grosso e não participou da festa, mas, nós, crianças, não sabíamos onde enfiar tanta alegria. Eles vieram num jipe, com motorista e tudo, em antecipação ao caminhão de mudança, que trazia os móveis e bugigangas pela comprida estrada de terra vermelha. Com a guaiaca cheia de dinheiro, João Porva pagava tudo o que lhe pedíamos e organizou vários churrascos na nossa casa de periferia, para espanto da vizinhança pobre. Tinham decidido viver em Maringá. Eu, que já sabia algumas  agruras da vida, atrevido, pergunto: “Mas, vão viver de quê, tia?”. Ela responde que Deus vai prover, que “a vida cuida bem dos passarinhos, por que não haverá de cuidar de nós?” e coisas assim, fazendo ecoar gostosas gargalhadas de irresponsabilidade completa. Compraram uma casa, curiosamente perto da zona do meretrício.  Será que João Porva tinha algo a ver com isso? Com certeza.  A partir daí, o cravo, a canela e as botas lustradas passaram a entrar em ação quase todas as noites, até que acabou o dinheiro da venda do sítio.


Já estávamos na década de 1970 e a política social do regime militar havia instituído a Aposentadoria Rural, com o que passaram a viver. João Porva se entristeceu, já não cantava e não usava o cravo e canela. Para quê, se não mais o recebiam nas casas onde um dia tinha brilhado. Muitas damas da noite que com ele dividiram a cama, já não lhe reconheciam nem cumprimentam nas ruas do bairro.  






Eu havia me tornado adulto e já tinha fugido em direção às capitais, em busca de meu destino. Em quase todas as ocasiões que visitava minha família em Maringá, eu também ia ver tia Luzia e João Porva. A quantidade de invernos acumulados no peito não recomendava o uso do tabaco, pois o cigarro de palha passou a fazer-lhes mal.  Eles viviam tossindo sem parar, mas, foi João Porva quem morreu primeiro. Bruzina, a irmã de tia Luzia, mandava recados para que ela fosse morar com eles em Rondônia, o que só aconteceu depois que João Porva foi pro céu. Nunca brigaram entre si, nem com ninguém.   Enquanto ele viveu, tia Luzia foi feliz na face da terra. 




    

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