quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Salpicados de sangue


Era uma beleza o pelotão de motociclistas do 1º Batalhão de Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. As motos Halley Davidson americanas acompanhavam todas as autoridades que visitavam o país, além dos deslocamentos do presidente da república pela cidade maravilhosa, o que praticamente era coisa diária, pois o General Médici detestava Brasília e morava no Palácio das Laranjeiras, onde eu adorava tirar guarda, não só pela paisagem e qualidade da comida, mas, principalmente, pelas cenas noturnas nos apartamentos, que eu via através das janelas abaixo das guaritas situadas no morro.  Canal erótico daqueles tempos. 
O comandante do pelotão de motociclistas era um major baixinho e barrigudo. Imagem completamente inesperada para o posto que ocupava, além de que destoava totalmente dos 40 ou 50 componentes do grupo,  sargentos e tenentes musculosos na faixa dos 30 anos. Surpreendentemente eles incluíam dois ou três jovens loiros já treinados em pilotagem de motos, recrutas vindos do sul do país, como todos nós. Não é preciso dizer que o major era adorado pelos seus comandados, além dos outros mil soldados que compunham o batalhão, pois os motociclistas eram o orgulho do quartel. Menos para mim e raros outros, que os considerávamos um bando de narizes empinados. A oficina deles era no meio de jardins e mangueiras centenárias, verdadeiro refúgio onde eu raramente entrava, pois não tinha o que fazer ali. Meu tempo no quartel se dividia em limpar os banheiros e o dormitório, quando não estava ralando pelo pátio em intermináveis ordens unidas. Além disso, cumpria minha rotina de guarda, fazendo a segurança do quartel. Nesta tarefa, às vezes era escalado para trabalhar no presídio, um local destinado a presos militares, mas que havia sido terceirizado para o DOI-CODI e transformado em centro de tortura.
Quem entrava ali estava totalmente à mercê do estado policial e não havia registro oficial dessa entrega, além da ficha e dos apontamentos preenchidos pelos encarregados do combate à guerrilha comunista, documentos de uso exclusivamente internos, descartáveis a qualquer momento. A possibilidade de desaparecimento de inocentes era grande, pois bastava ser confundido com membros das organizações clandestinas e o sujeito podia sumir de modo igualmente clandestino. Á sociedade ou às suas famílias, não se prestava qualquer informação. Entre a soldadesca recruta, contavam-se várias lendas, provavelmente fantasiosas, como a que dizia dum certo marechal da segunda guerra, que lá foi em busca de seu neto e, sendo destratado pelo capitão que o recebeu, puxou a pistola e o executou ali mesmo.  Como eu disse, eram lendas. Se os próprios interrogatórios nunca existiram oficialmente, imagine se uma coisa dessa iria ser registrada.            
Cumprindo minha sina, estava eu de plantão na porta do presídio, num daqueles dias onde o movimento era grande. Vários prisioneiros estavam de pé contra a parede externa, expostos ao sol do meio dia do verão carioca, devidamente encapuzados. Quando um deles fraquejava e se encostava na parede, vinha um torturador e lhe aplicava um corretivo, normalmente um jump de direita no fígado, que fazia o sujeito urrar de dor, após os segundos necessários para voltar a respirar.  Digamos que fazia parte da preparação para o que viria a seguir.  No grupo dos presos estava um senhor mulato, de cabelos brancos, agüentando firme sua condição, enquanto o major dos motociclistas passava ao largo. Pois ele se aproxima do velho encapuzado e covardemente mete-lhe um soco na boca do estômago. Enquanto a vítima se curva de dor, o major baixinho grita  “Velho sem vergonha!  Comunista safado!” e se afasta, sob a aprovação risonha dos carrascos.  Eu não tinha a menor idéia de quem era o velho, mas sou capaz de jurar que o major também não. Era o simples despejar do seu conteúdo satânico. Ali eu desejei e rezei para que ele tivesse o pior que pudesse em termos de desgraças na vida.



Mas, naquele tempo, como diz a letra do Chico Buarque, eles é que mandavam na vida e na morte, “Falou, tá falado, não tem discussão”. E ali no quartel da PE o pau comia solto mesmo, diferente de outros órgãos que também atuavam na guerra contra a esquerda, porém de forma mais tranqüila e até civilizada, como o quartel descrito pelos editores do jornal "O Pasquim", onde, segundo Jaguar, o comandante ia conversar amenidades com eles durante as noites na prisão. Há uma piada onde Oscar Niemayer, o grande arquiteto de Brasília, também preso num quartel regular, foi interrogado por um coronel que insistia em duas coisas: “1) Que negócio é esse de Cubismo?  2) Como o senhor ganhou tanto dinheiro?”  Niemayer respondeu que uma coisa está ligada à outra, “ou o senhor não sabia que eu ganhei dinheiro dando o dito cujo?”.  Até os assistentes presentes à sessão caíram na gargalhada.  
Lembro-me sempre destas coisas, mas agora elas estão mais em evidência na minha memória, quando vejo a campanha nacional na Argentina pela punição dos torturadores.  Lá foram mais de 30 mil mortos e desaparecidos e o país sente sede de justiça uns, revanche outros, o que torna o cenário pra lá de tenso.  Tenho dúvidas sobre a eficácia de campanhas que tentam passar tudo a limpo. Milhares de torturadores não serão identificados, outro tanto vai escapar por falta de provas, adeptos do antigo regime apelam para o ambiente da época de guerra, onde sempre haverá torturas e injustiças,  cumprimento de ordens superiores, etc. Além disso, promove-se uma profunda divisão na sociedade, como está havendo na Argentina. No Brasil,  uma campanha punitiva nos mesmos moldes talvez ainda acabasse por inocentar os torturadores graúdos, sobrando o pior para alguns sargentos e praças.
Uma bela manhã na PE, durante a formação, eis que aparece o major dos motociclistas, citado no boletim de ocorrências do Batalhão. Estava sendo mandado para a prisão, onde aguardaria julgamento  por fraude contábil. Foi pego numa auditoria do 1º Exército. Eu não me cabia, de tão contente.




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