Era uma beleza o pelotão de motociclistas do 1º
Batalhão de Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. As motos Halley Davidson
americanas acompanhavam todas as autoridades que visitavam o país, além dos
deslocamentos do presidente da república pela cidade maravilhosa, o que
praticamente era coisa diária, pois o General Médici detestava Brasília e
morava no Palácio das Laranjeiras, onde eu adorava tirar guarda, não só pela
paisagem e qualidade da comida, mas, principalmente, pelas cenas noturnas nos apartamentos, que eu
via através das janelas abaixo das guaritas situadas no morro. Canal erótico daqueles tempos.
O comandante do pelotão de motociclistas era um
major baixinho e barrigudo. Imagem completamente inesperada para o posto que
ocupava, além de que destoava totalmente dos 40 ou 50 componentes do
grupo, sargentos e tenentes musculosos na faixa dos
30 anos. Surpreendentemente eles incluíam dois ou três jovens loiros já
treinados em pilotagem de motos, recrutas vindos do sul do país, como todos
nós. Não é preciso dizer que o major era adorado pelos seus comandados, além
dos outros mil soldados que compunham o batalhão, pois os motociclistas eram o
orgulho do quartel. Menos para mim e raros outros, que os considerávamos um
bando de narizes empinados. A oficina deles era no meio de jardins e
mangueiras centenárias, verdadeiro refúgio onde eu raramente entrava, pois não
tinha o que fazer ali. Meu tempo no quartel se dividia em limpar os banheiros e
o dormitório, quando não estava ralando pelo pátio em intermináveis ordens
unidas. Além disso, cumpria minha rotina de guarda, fazendo a segurança do
quartel. Nesta tarefa, às vezes era escalado para trabalhar no presídio, um
local destinado a presos militares, mas que havia sido terceirizado para o
DOI-CODI e transformado em centro de tortura.
Quem entrava ali estava totalmente à mercê do
estado policial e não havia registro oficial dessa entrega, além da ficha e dos
apontamentos preenchidos pelos encarregados do combate à guerrilha comunista,
documentos de uso exclusivamente internos, descartáveis a qualquer momento. A
possibilidade de desaparecimento de inocentes era grande, pois bastava ser
confundido com membros das organizações clandestinas e o sujeito podia sumir de
modo igualmente clandestino. Á sociedade ou às suas famílias, não se prestava
qualquer informação. Entre a soldadesca recruta, contavam-se várias lendas, provavelmente fantasiosas, como a que dizia dum certo marechal da
segunda guerra, que lá foi em busca de seu neto e, sendo destratado pelo capitão que
o recebeu, puxou a pistola e o executou ali mesmo. Como eu disse, eram lendas. Se os próprios interrogatórios nunca existiram oficialmente, imagine se uma coisa dessa iria ser registrada.
Cumprindo minha sina, estava eu de plantão na porta
do presídio, num daqueles dias onde o movimento era grande. Vários prisioneiros
estavam de pé contra a parede externa, expostos ao sol do meio dia do verão
carioca, devidamente encapuzados. Quando um deles fraquejava e se encostava na parede, vinha um torturador e lhe aplicava um
corretivo, normalmente um jump de
direita no fígado, que fazia o sujeito urrar de dor, após os segundos necessários para voltar a respirar.
Digamos que fazia parte da preparação para o que viria a seguir. No grupo dos presos estava um senhor mulato,
de cabelos brancos, agüentando firme sua condição, enquanto o major dos
motociclistas passava ao largo. Pois ele se aproxima do
velho encapuzado e covardemente mete-lhe um soco na boca do estômago. Enquanto
a vítima se curva de dor, o major baixinho grita “Velho sem vergonha! Comunista safado!” e se afasta, sob a
aprovação risonha dos carrascos. Eu não
tinha a menor idéia de quem era o velho, mas sou capaz de jurar que o major
também não. Era o simples despejar do seu conteúdo satânico. Ali eu desejei e
rezei para que ele tivesse o pior que pudesse em termos de desgraças na vida.
Mas, naquele tempo, como diz a letra do Chico Buarque, eles é que mandavam na vida e na morte, “Falou, tá falado,
não tem discussão”. E ali no quartel da PE o pau comia solto mesmo, diferente
de outros órgãos que também atuavam na guerra contra a esquerda, porém de forma
mais tranqüila e até civilizada, como o quartel descrito pelos editores do jornal "O Pasquim", onde, segundo Jaguar, o comandante ia conversar amenidades com eles durante
as noites na prisão. Há uma piada onde Oscar Niemayer, o grande arquiteto de
Brasília, também preso num quartel regular, foi interrogado por um coronel que
insistia em duas coisas: “1) Que negócio é esse de Cubismo? 2) Como o senhor ganhou tanto dinheiro?” Niemayer respondeu que uma coisa está ligada à
outra, “ou o senhor não sabia que eu ganhei dinheiro dando o dito cujo?”. Até os assistentes presentes à sessão caíram
na gargalhada.
Lembro-me sempre destas coisas, mas agora elas estão
mais em evidência na minha memória, quando vejo a campanha nacional na
Argentina pela punição dos torturadores.
Lá foram mais de 30 mil mortos e desaparecidos e o país sente sede de
justiça uns, revanche outros, o que torna o cenário pra lá de tenso. Tenho dúvidas sobre a eficácia de campanhas
que tentam passar tudo a limpo. Milhares de torturadores não serão
identificados, outro tanto vai escapar por falta de provas, adeptos do antigo
regime apelam para o ambiente da época de guerra, onde sempre haverá torturas e
injustiças, cumprimento de ordens
superiores, etc. Além disso, promove-se uma profunda divisão na sociedade, como
está havendo na Argentina. No Brasil, uma campanha punitiva nos mesmos moldes talvez
ainda acabasse por inocentar os torturadores graúdos, sobrando o pior para
alguns sargentos e praças.
Uma bela manhã na PE, durante a formação, eis que
aparece o major dos motociclistas, citado no boletim de ocorrências
do Batalhão. Estava sendo mandado para a prisão, onde aguardaria julgamento por fraude contábil. Foi pego numa auditoria
do 1º Exército. Eu não me cabia, de tão contente.
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